Diversas culturas fazem um uso da cannabis que transcende o uso recreativo para ficar chapado ou criativo e está presente na conexão com o divino e até mesmo em rituais ligados à morte. A Índia faz parte de um grupo de países, como Marrocos e Jamaica, em que o uso cultural de cannabis persiste por um longo período da história.

Nesse texto vamos retomar um pouco da história da cannabis e entender a presença milenar da cultura cannábica na Índia, além dos diferentes usos e formas de maconha que são encontrados no país, vamos falar sobre o método de extração do Haxixe Indiano, ou  Haxixe Charas, um dos mais famosos do mundo e o chillum, um tipo de cachimbo especial para fumar esse haxixe.

História da cannabis na Índia 

A cannabis sativa também conhecida como cânhamo, charas, dagga, diamba, ganja, gong, haxixe, injaga, kancha, kanebosm, kif, maconha, mbange, umburu é uma das plantas de fibra cultivadas mais antigas do Velho Mundo. Apesar de ser impossível classificar exatamente quando e onde se originou o uso da cannabis por povos antigos, antropólogos e historiadores concordam que a cannabis tenha sido descoberta em algum lugar entre as montanhas do Cáucaso e a Ásia Oriental.

A mobilidade das comunidades nômades do norte da China aparentemente influenciou o movimento da planta até o oeste da Ásia e dali até a Índia, onde o uso da cannabis se tornou muito popular em diversas funções.

Segundo o doutor em psicofarmacologia Elisaldo Carlini, um dos pioneiros em investigações sobre o potencial uso terapêutico de cannabis e outros psicotrópicos, o uso da maconha em rituais religiosos na Índia, assim como o uso medicinal e industrial na China é conhecido desde 4.000 anos a.C. Tais usos englobavam a fabricação de cordas, redes de pesca e roupas.

Os Vedas, escritos antigos que servem como fundamento da civilização hindú, consideram que a Ganja, assim como outras plantas medicinais, se originou a partir do “néctar primordial que surgiu durante a agitação dos oceanos”. Também existem menções do uso da ganja também em práticas de yoga e meditação.

A seguir, vamos explorar mais cada um diferentes usos de cannabis citados na história e presentes até hoje na Índia. 

Uso religioso de cannabis na Índia

O hinduísmo moderno é resultado da influência da Era Budista e do Bramanismo e representa a religião escolhida por mais de 80% da população na Índia. A religião que tem como livro sagrado os vedas, se baseia na crença de que os seres humanos morrem e renascem várias vezes em um processo de evolução, até chegar no estágio em que se unem a Brahman

Diferente das religiões do livro – catolicismo, islamismo e judaísmo, o hinduísmo é politeista, ou seja, acredita na existência de vários deuses e deusas criadores. Ainda que alguns estudiosos apontem que todos os deuses são a manifestação de apenas um, na prática diferentes deuses são cultuados pelos seguidores da religião. Os principais deuses são Brahma – o criador, Vishnu – o preservador e Shiva – o destruidor.

O uso de substâncias intoxicantes é um tema muito importante dentro do hinduísmo. Isso porque o consumo de álcool é absolutamente proibido entre os Brahman, a varna mais elevada do sistemas de castas e entre os Bhagats, os homens santos ou devotos. Este último grupo, quando se torna um devoto, abdica do consumo não só de bebidas alcoolocas, mas de carne, cebola, alho e outros alimentos considerados intoxicantes e também de relações sexuais. Apesar disso, a cannabis não é proibida para os Bhagats.

A proibição do álcool pela religião não significa que não haja uso de álcool entre os hindus, porém as sanções culturais e religiosas do álcool tornam a atitude mais estigmatizada e impopular. 

Isso é notável no cotidiano na Índia, onde não há uma vasta opções de bebidas alcoólicas como no Brasil. O consumo de álcool na Índia limita-se ao uso do daroo ou sharaab (vinho), tharra (licos caseiro) e taari ( suco de palmeira), porém mesmo entre os indivíduos que fazem uso de álcool, durante a velhice esse hábito é abandonado em uma busca de purificação antes da morte.

Da mesma forma que a religião influencia o comportamento social em evitar o álcool e consumir principalmente bebidas fermentadas caseiras, o fato da cannabis não ser proibida para os Brahman e Bhagats faz com que o seu consumo não seja estigmatizado, ao contrário, a cannabis está inserida em cerimônias religiosas e sociais.

A relação da planta com o Deus Shiva

Um dos motivos desse uso religioso da cannabis na Índia é a associação da planta com o Deus Shiva. Na mitologia hindu, Shiva engoliu o veneno que saiu da agitação do mar e destruiria a humanidade, se não fosse a intervenção do deus.

O motivo da associação do deus Shiva com a cannabis não é certa, mas antropólogos acreditam que a passagem do texto hinduísta Satapatha brahmana, que menciona a planta soma como sendo o alimento dos deuses e espíritos, se referia às oferendas de cannabis para os espíritos que acontecem na lua nova.

Uma das expressões mais importantes do uso religioso de cannabis no mundo, acontece no festival anual Shivaratri, que é celebrado no décimo quarto dia da metade escura do mês Phalgtm, pois se acredita que Shiva se casou nesse dia.

O Shivaratri é um dia de alegria, e a cannabis está presente de diversas formas, tanto nas oferendas feitas nos templos ao deus da destruição, como também nos rituais e cultos à felicidade praticados pelas pessoas durante esse dia.

Como a maconha é usada na Índia?

Atualmente, existem três formas principais de uso de maconha na Índia. O uso do Bhang, uma bebida preparada com as folhas secas de cannabis, as flores de cannabis trituradas fumadas pura ou misturada de tabaco, e o uso da resina de cannabis, o haxixe.

O Haxixe Indiano, conhecido como Haxixe Charas, é feito com as mãos e fumado em uma espécie de cachimbo tradicionalmente de barro chamado Chillum. A ganja também pode ser fumada com esse objeto. O bhang é feito com leite, chás ou até mesmo doces, mas a principal forma em que o bhang é consumido é em forma de bolinhos ou em uma bebida chamada thandai.

O uso do bhang tem muito valor cultural, pois seu processo de preparo é demorado e envolve uma atmosfera social de grande importância. Membros da família, de uma mesma varna, círculo de amigos ou de uma mesma vizinhança se reúnem para preparar o bhang juntos. Além do ritual canônico, esse encontro simboliza um momento para conversar sobre o cotidiano e fortalecer o grupo.

O bhang também leva diversas frutas secas, amêndoas, pistache, pétalas de rosa, pimenta preta, anis e cravo. Os condimentos são triturados até formar uma pasta, que pode ser misturada com água, leite ou açúcar.

A venda do bhang na Índia é comum tanto nas cidades grandes como nas aldeias e seu custo é baixo.

Haxixe Charas

O Haxixe Charas é extraído das flores de cannabis com as mãos e a resina que fica colada nas luvas é juntada formando um dos haxixes sem solventes mais famosos do mundo. 

O Charas, assim como a ganja, é fumado no chillum, um cachimbo que tradicionalmente era feito de barro, mas hoje em dia é encontrado em diversos tipos de materiais como madeira e cerâmica.  

Como é o ritual do Chillum 

Fumar no chillum é outro ritual importante na cultura hindu. Pessoas do mesmo grupo se reúnem para compartilhar o charas ou a ganja nessa espécie de cachimbo.

O chillum tem formato cônico e a parte de baixo do funil é coberta com um pequeno filtro de argila carbonizado. Em seguida, a mistura da cannabis com tabaco é colocada nesse filtro. Baand, um pequeno anel, do tamanho do chillum, de fibra de corda é queimado separadamente e depois, rapidamente é colocado em cima do chillum para acender o material.

O chillum é fumado em roda, com as pessoas normalmente agachadas, que vão tragando o instrumento e passando entre várias outras pessoas, entretanto a pureza do cachimbo é sempre preservada e nunca pode ser tocado pelos lábios do fumante. O cachimbo deve ser segurado pela parte inferior com a mão esquerda que a sustenta, enquanto a direita ajuda a baforar o chillum sem encostar a boca.

A maconha é legalizada na Índia?

Apesar da forte presença da cannabis na cultura hindu, a Lei de Narcóticos e Substâncias Psicotrópicas de 1985 da Índia ainda proíbe o consumo, posse e venda de marijuana federalmente, apesar disso, os estados têm autonomia para tratar da lei de cannabis. 

O Odisha é um estado onde o uso da cannabis é legal, já Uttarakhand foi o primeiro estado da Índia a permitir o cultivo comercial de cânhamo. Outros estados na montanha estão considerando a proposta da produção controlada da maconha industrial.

Já o bhang é produzido e comercializado sob uma perspectiva de que a bebida e seus derivados são feitos com a parte de sementes, folhas, caule e raízes da cannabis, ou seja, por definição não faz parte da parte psicoativa da planta como as folhas e a resina. 

Mesmo assim, é preciso ter cuidado ao comprar maconha em uma viagem pela Índia. Até portar drogas é um crime no país e a punição depende da quantidade de maconha em posse.

Para pequenas quantidades, a pena prevista é prisão de até 6 meses, multa de Rs 10.000 (aproximadamente USD 150) ou ambos. Já em casos de grandes quantidades de maconha, a pena de prisão pode chegar até 10 anos, multa de Rps 1 lakh (aproximadamente USD 1500) ou ambos. Já a quantidade considerada comercial, no caso do Haxixe acima de 1kg e no caso da maconha acima de 20kg, a pena de prisão pode ser até 20 anos, multa de Rsp 2 lakh (aproximadamente USD 3000) ou ambos.

Conclusão

Uma alimentação vegetariana e equilibrada, jejum, asbstação de bebida alcoolicas e do sexo são práticas valorizadas na sociedade hindu, pois estão associadas a varna mais elevada e aos homens sagrados. O fato da cannabis não ser proibida para esses grupos faz com que o uso da maconha não seja tão estigmatizado, muito pelo contrário, também é incorporado em rituais sociais e religiosos do país.

O uso da cannabis tem uma relação interessante com a interação social da sociedade hindu, que acontece tanto na preparação das bebidas com bhang, como também no ato de compartilhar o chillum. Outro fator importante é o uso no festival em homenagem ao deus Shiva.

Esses exemplos mostram que a cannabis e suas variações têm um valor cultural na sociedade hindu que transcendem o uso para ficar chapadão que ocorre nas sociedades ocidentais. O uso de cannabis na Índia faz parte do cotidiano, das interações sociais entre grupos, de rituais religiosos, de conversas triviais e também da união entre grupos.

Apesar desse uso cultural tão aflorado e presente nas investigações de distintos antropólogos e historiadores e do famoso haxixe charas que dá água na boca de qualquer maconheiro, legalmente o porte e consumo de cannabis é proibido nas suas formas de ganja e charas, enquanto o bhang é legalizado.

Por isso, em uma viagem para um território tão diferente culturalmente como a Índia, é sempre importante se informar com os locais e observar quais são os melhores lugares para consumir cannabis e não chegar acendendo um baseado logo de cara.

Apesar disso, em uma viagem para a Índia, o maconheiro encontra muito mais do que uma ganja e um haxixe de qualidade, mas também viver uma experiência cultural e ancestral relacionada com a erva.

Espero que vocês tenham entendido mais sobre a história e rituais canábicos na Índia, deixem nos comentários qualquer dúvida!

Referências:

Rubin, Vera. Cannabis and Culture, Berlin, New York: De Gruyter Mouton, 1975.

Romero, Maria Fernanda, “Quem ganhou a guerra às drogas?” São Paulo, ISBN 978-65-995250-0-1, 2021.