Cannabis e LGBTQIA+: lutas que se unem ao longo da história

Você sabia que a trajetória (de luta) pela legalização da Cannabis e do movimento LGBTQIA+ caminham paralelamente?


Sumário

  1. Volta no tempo com a história da Cannabis Medicinal: uma volta no tempo
  2. Mas e o que tudo isso tem a ver com LGBTQIA+?
  3. O preconceito a comunidade LGBTQIA+ e a negligência de atendimento médico para a ‘‘praga gay’’
  4. A cannabis entra em cena!
  5. Harvey Milk, Brownie Mary, Denis Peron e o ativismo canábico aliados a comunidade LGBTQIA+ de Castro
  6. A carreira política de Milk e a ajuda de Peron
  7. O resultado do árduo trabalho de Brownie Mary, Milk e Peron no Castro
  8. A força do movimento LGBTQIA+ no Brasil e as drogas
  9. Zé Celso e as drogas 
  10. Da periferia para o mundo: Ludmilla ícone lésbico e fã da verdinha  
  11. O deputado Jean Wyllys, primeiro congressista assumidamente gay
  12. Erika Hilton: a primeira deputada trans e negra
  13. Considerações finais

A legalização da Cannabis Medicinal ganha força quando a comunidade gay passa a defender seu uso no auge da epidemia da AIDS, na Califórnia, nos Estados Unidos. 

Vem com a gente que vamos te contar essa história em detalhes!

Volta no tempo com a história da Cannabis Medicinal: uma volta no tempo

A Cannabis Medicinal é o uso da planta Cannabis Sativa para fins terapêuticos e tratamento de vários tipos de doenças.
Como já contamos por aqui, o cultivo do cânhamo, que é uma planta da espécie Cannabis Sativa, é uma das práticas agrícolas mais antigas do mundo.
Descrições encontradas em um antigo livro chinês o Pen-ts´ao Ching, considerado a primeira farmacopeia da história, recomendava o uso da Cannabis como tratamento medicinal por volta de 2700 a.C.. 

No passado, o cânhamo também tinha lugar de destaque na produção de tecidos, papel e alimentos na Ásia e no Oriente Médio. Em 476 d.C. a Antiguidade chega ao fim e o uso do cânhamo não desaparece e se espalha pelo Ocidente,visto que as velas e as cordoarias das caravelas portuguesas que aqui aportaram eram todas feitas de cânhamo. 

Devido a tal importância, entre 1716 e 1822 a Coroa Portuguesa incentivou e fez várias tentativas de produção de cânhamo na Colônia do Brasil. 

A Cannabis seguiu seu caminho ao longo da história da humanidade com registros  encontrados em 1500 a.C. no Antigo Egito e, no século 19, a “tintura de cannabis” já era utilizada nos Estados Unidos para alívio das dores e náuseas.

No entanto, foi nos anos 30, que houve uma intensa campanha contra a cannabis liderada por grupos conservadores com interesses políticos e econômicos. 

Nessa época, o cânhamo passa a ser visto como uma grande ameaça à indústria do papel e seus aditivos derivados do petróleo,podendo vir a ser um obstáculo ao crescimento deste mercado. 

Grandes jornais passaram a publicar matérias associando o cannabis a crimes violentos,  e  sob muita pressão, em 1937, o congresso americano proibiu não apenas o uso do cânhamo, da maconha recreativa e também todas as suas possibilidades medicinais. 

Nos anos seguintes, o mesmo aconteceu em várias partes do mundo.

Já o fumo da planta, chegou em terras brasileiras com as pessoas escravizadas  trazidas da África.Já ouviu falar da famosa strain Manga Rosa? Foi de lá que ela veio.
Desde então, a cannabis passou por diferentes regulamentações legais em várias partes do mundo. 

Em muitos lugares foi criminalizadas, como na Indonésia, em que consumir a plantinha é pena de morte. Por outro lado, em países como a Tailândia, o uso recreativo é 100% liberado. 

Mas e o que tudo isso tem a ver com LGBTQIA+?

Tanto os usuários de cannabis, quanto a comunidade LGBTQIA + têm mais do que sua história de resistência em comum. 

Ambos foram injustamente demonizados na opinião pública, carregaram um forte estigma e viveram à margem do que era considerado a norma social.

Este pré-conceito partilhado tornou as duas comunidades aliadas durante décadas, mas foi a epidemia da AIDS no final dos anos 80 e 90 nos Estados Unidos que firmou os laços entre elas.

O que foi a epidemia da AIDS?

Os primeiros casos de AIDS conhecidos no mundo foram registrados nos Estados Unidos, no Haiti e na África Central, no ano de 1977. 

A síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), começou a causar preocupações entre as autoridades de saúde pública na década de 80 nos Estados Unidos. 

Os cientistas ainda não têm informações suficientes para comprovar a forma exata como o HIV surgiu e há quanto tempo circula. 

O que se sabe é que se originou de uma variante do vírus da imunodeficiência símia (SIV) que infecta chimpanzés e macacos na África Central e Ocidental. 

Acredita-se que o SIV possa ser transmitido aos humanos através do contato com o sangue infectado desses primatas, caçando ou comendo sua carne. 

A entrada deste vírus no corpo humano estimula a adaptação do vírus à nossa espécie, resultando na criação do HIV.

Ao longo da década de 1980, a AIDS espalhou-se rapidamente pelos cinco continentes, infectando 300.000 pessoas, causando uma epidemia mundial. 

Afetou principalmente a comunidade gay da Califórnia, onde em 1990 mais de 700.000 mil pessoas viviam com a doença e centenas de milhares tinham morrido devido a ela.

O vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um patógeno que invade facilmente as células de defesa animal e a partir daí transcreve seu próprio genoma. 

O HIV, pode variar em tipo e gravidade de pessoa para pessoa, e algumas pessoas podem não apresentar sintomas durante muitos anos. 

A infecção é definida em três estágios: 

  • 1- infecção primária aguda;
  • 2- estágio assintomático;
  • 3- infecção sintomática pelo HIV;

É na terceira fase que o sistema imunológico de uma pessoa fica gravemente danificado e, portanto, entende-se  que ela tem “AIDS”. 

Neste mesmo estágio , os pacientes podem sofrer de uma série de sintomas desafiadores, incluindo perda de peso, diarreia crônica, suores noturnos, febre, tosse persistente, problemas na boca e na pele, infecções regulares e doenças ou enfermidades graves.

O preconceito a comunidade LGBTQIA+ e a negligência de atendimento médico para a ‘‘praga gay’’

À medida que a epidemia da AIDS se espalhou pelas comunidades homossexuais, a doença emergente matou milhares de pessoas nos Estados Unidos. 

Devido à homofobia desenfreada e à crença equivocada de que apenas homens gays poderiam contrair AIDS, a ajuda do sistema médico e do governo foi negligenciada por muito tempo. 

Isso marcou a história da saúde mundial e até os dias de hoje apavora a sociedade na forma de homofobia, transfobia e forte preconceito em relação à doença.

Por conta desse preconceito, a comunidade LGBTQIA+ entrou em pânico desde o início, especialmente em São Francisco, Nova York e Los Angeles, fechando bares e casas de festas para se esconder e revistar seus corpos em busca de qualquer sinal de sintoma da doença.

“Silêncio é igual à morte”, estampada em milhares de cartazes, camisetas e adesivos ao redor do mundo, foi a frase que representou o combate à propagação do vírus e a conscientização do governo sobre a doença, que acabou se tornando  importante para a comunidade LGBTQIA+ com o apelido de “Câncer Gay” e “Praga Gay”. 

O então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, recusou-se a falar sobre a AIDS desde o início. 

Em 1981, quando o assunto foi levantado em conferências de imprensa, argumentou que a doença poderia estar limitada aos homens gays. 

Regan só reconheceu publicamente o vírus pela primeira vez em 1985, quando quase 50 mil pessoas já haviam morrido.

A cannabis entra em cena!

Na ausência de terapias tradicionais ou de apoio institucional e governamental à comunidade gay (nome da época), os pacientes com AIDS descobriram que a cannabis ajudava nos alívios dos sintomas.

Uma figura importante na descriminalização e legalização da cannabis na Califórnia foi Dennis Peron. 

Empresário, veterano da Guerra do Vietnã e gay, Peron foi uma figura-chave no movimento pela maconha da década de 1990, considerado o pai da cannabis medicinal em San Francisco. 

Não só o  amor e a defesa da maconha medicinal mudaram o cenário político na Califórnia, Dennis também acabou se tornando um símbolo de esperança para as comunidades queer durante a crise da AIDS. 

Além disso, seu trabalho com  Brownie Mary e  Harvey Milk concretizou um lugar na história como uma das figuras mais influentes nas comunidades canábicas e LGBTQIA+ da época. 

Mary Dennis Person
Foto: Newsweed FR

Peron foi criado em Nova York, onde começou a consumir maconha ainda adolescente. 

Atraído pela contracultura e a cultura hippie, visitou São Francisco em 1967 durante o ‘Summer Of Love’ e notou a receptividade dos hippies à comunidade gay. 

Pouco depois, Perón ingressou na Força Aérea dos EUA para servir na Guerra do Vietnã.

Ao regressar para San Francisco, após a Guerra, com dois quilos de maconha iniciou-se uma carreira de dedicação à planta que durou 40 anos. 

A natureza progressista do bairro Castro, onde morou, fez com que Peron se sentisse seguro para vender abertamente maconha no seu supermercado “Big Top” durante a década de 1970 aos habitantes do bairro.

Qualquer pessoa que possa desfrutar hoje de acesso legal à cannabis nos Estados Unidos tem uma dívida de gratidão com o Dennis Peron.

Mary Jane Rathbun e o Dennis Peron em 1993.
Foto: Mary Jane Rathbun e o Dennis Peron em 1993.

“The Island Restaurant”

A história de Dennis não para por aí. Seu segundo empreendimento foi um compromisso ainda maior com a missão de tornar a maconha mais acessível à população, mas isso lhe custou diversas prisões, multas por infringir a lei e muita violência policial.

Inaugurado em 1974, o The Island Restaurant apresentava um menu vegetariano e uma área no andar superior que servia maconha a seus frequentadores. 

O restaurante tornou-se um local para os defensores da cannabis e a comunidade gay se reunirem, sabendo que poderiam discutir em segurança a legalização da planta e os direitos homossexuais longe da brutalidade policial. 

Além de fornecer um espaço seguro para essas comunidades condenadas socialmente, Dennis oferecia regularmente cannabis para quem tivesse uma necessidade médica, sabendo que a planta poderia ajudar a aliviar os sintomas de inúmeras doenças.

A epidemia da AIDS e a cannabis

Em uma época em que ser abertamente gay também era um risco para a sua segurança e liberdade, Peron escolheu São Francisco para chamar de casa e ser a versão mais legítima de si mesmo. 

Desde sua primeira visita a São Francisco, Dennis ficou impressionado com a receptividade da cidade em relação à comunidade gay. 

Quando a epidemia da AIDS começou a devastar a população gay de São Francisco, Peron sabia que a cannabis poderia ajudar com os sintomas da doença. 

Ele fornecia a cannabis gratuita ou muito barata a qualquer pessoa que tivesse sintomas da AIDS, sabendo como isso poderia ajudar a minimizar as náuseas e estimular o apetite. 

Estas duas qualidades por si só fazem da cannabis uma ferramenta imensurável para ajudar os pacientes com AIDS a manter um peso saudável frente a uma doença devastadora.

Assim, ele começou sua jornada como um ativista gay, apareceu  em debates na televisão onde defendia a maconha e exigia direitos iguais para a comunidade LGBTQIA +. 

No final da década de 1980, ele parou totalmente de vender maconha devido a uma tragédia pessoal: a sua experiência pessoal com a AIDS. 

Seu parceiro, Jonathan West, ficou doente e acabou morrendo de AIDS em 1990. Mesmo diante do luto, Dennis pode se consolar ao saber como a maconha ajudou a aliviar o sofrimento de Jonathan em seus últimos dias. 

Depois da morte de Jonathan, a sua defesa concentrou-se no esclarecimento sobre a AIDS e na utilidade da cannabis para os cuidados paliativos dos pacientes com a doença.

Harvey Milk, Brownie Mary, Denis Peron e o ativismo canábico aliados a comunidade LGBTQIA+ de Castro

Perón fez do bairro de Castro sua casa e abriu vários ‘supermercados’ de cannabis. Enquanto administrava o supermercado no andar de cima do Island Restaurant, Dennis conheceu e tornou-se amigo de Harvey Milk, um empresário defensor dos direitos dos homossexuais, ativista e político. 

No cotidiano do bairro de Castro, Peron conheceu Mary Rathbun, também conhecida como Brownie Mary, uma garçonete divorciada que pretendia construir um fundo de aposentadoria vendendo brownies de maconha. 

O bairro de Castro foi o ponto de encontro perfeito para estes três pioneiros e a importância do bairro nas notáveis ​​conquistas do movimento LGBTQIA+ e da cannabis.

A carreira política de Milk e a ajuda de Peron

Em 1977, Dennis ajudou a histórica campanha de Harvey Milk para ser eleito com sucesso para o Conselho de Supervisores de São Francisco. 

Esse evento fez com que Milk fosse o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia. 

Ele causou impacto imediato, aprovando um projeto de lei que proibiu a discriminação com base na orientação sexual. Inclusive, podemos indicar um filme sobre a história de Harvey, “Milk, a voz da Igualdade”. 

Em troca da ajuda de Peron na divulgação de sua campanha, Milk usou a sua influência política para ajudá-lo a aprovar a Proposição W, que permitiu que os moradores de San Francisco pudessem cultivar e comprar a planta legalmente, em 1978. 

Como resultado, encorajou as autoridades locais e o procurador distrital a pararem de prender e processar aqueles que cultivam, distribuem ou possuem a cannabis.

Antes que pudesse completar um ano inteiro no cargo, Harvey Milk foi assassinado por um ex-colega do Conselho de Supervisores. 

Infelizmente a história do movimento LGBTQIA + está repleta por diversos episódios como este. 

Os caminhos cruzados de Brownie Mary e Peron na epidemia da AIDS 

Dennis e Mary compartilhavam uma filosofia semelhante em torno do ativismo social e da liberdade pessoal, e, por conta de todos os acontecimentos anteriores, Perón passou a vender os brownies de Mary em seu supermercado ‘Big Top’ noCastro. 

Para ajudar os pacientes que sofriam, Dennis doou incontáveis ​​​​​gramas de maconha para Mary produzir e distribuir centenas de brownies infundidos com cannabis à comunidade LGBTQIA+ do bairro Castro.

Mais adiante, em 1991, Dennis e Mary foram fundamentais na aprovação da Proposta P, que legalizou o uso medicinal de cannabis dentro dos limites da cidade de São Francisco. 

Esta foi a primeira vez, desde a década de 1930, que os médicos puderam receitar legalmente a maconha. 

Além disso, Peron foi o precursor da primeira lei estadual que permitiu o acesso à cannabis medicinal a partir de prescrições médicas.

Nos anos seguintes, Brownie Mary e Denis continuaram a reunir apoio de vários grupos para uma lei semelhante à Proposta P, que poderia beneficiar toda a Califórnia. 

Isto culminou em uma vitória histórica em 1996, quando a Proposta 215 foi aprovada, permitindo o acesso legal à cannabis para uso medicinal em todo a Califórnia. 

O resultado do árduo trabalho de Brownie Mary, Milk e Peron no Castro

Dennis Peron fez de Castro sua casa e um epicentro do movimento da maconha medicinal por meio de seus vários supermercados, estabelecendo relações diretas com as leis que ajudou a aprovar na Califórnia  e que moldam uma parte da história da legalização da cannabis nos Estados Unidos e do movimento LGBTQIA+.

A ideia de Peron de vender maconha em seus supermercados deram origem aos dispensários que abriram suas portas em todo o estado  da Califórnia após aprovação da Proposta 215. 

A lei permitiu que os residentes tivessem acesso à cannabis para o tratamento de muitas  doenças.

Segue uma linha do tempo dos esforços de legalização feita em conjunto por Brownie Mary, Harvey Milk e Dennis Peron:

  • 1970 – Supermercados de Maconha: mercados ilícitos e clandestinos de cannabis no Castro. 
  • 1978 – Proposição W: Ordenou ao Promotor Distrital de São Francisco que parasse de prender pessoas por posse, distribuição ou cultivo de cannabis.
  • 1991 – Proposição P: Permitiu que os residentes de São Francisco consumissem cannabis medicamente recomendada.
  • 1994 – Cannabis Buyers Club: O primeiro ‘dispensário’ compassivo foi inaugurado com Brownie Mary e vários outros.
  • 1996 – Proposição 215: Permitiu que os residentes da Califórnia tivessem acesso a cannabis medicinal legalmente, o que possibilitava que os médicos recebessem a cannabis legalmente,sendo esse sem dúvida um dos maiores legados. Logo após a aprovação da Proposta 215, outros estados começaram a ter iniciativas semelhantes e a discutir a legalização.
Peron e Rathbun
Peron e Rathbun
A esquerda Denis Peron e a direita Harvey Milk)
Foto: Join The Club,’ A.U.M. Films (A esquerda Denis Peron e a direita Harvey Milk)

A força do movimento LGBTQIA+ no Brasil e as drogas

No Brasil, a história de Cazuza foi marcada também pela intersecção dos dois movimentos.  

O artista que enfrentou a AIDS e ajudou a desmistificar a doença em uma época em que ela devastou populações no mundo todo, teve um papel  importante para o movimento gay da época e para a luta contra os preconceitos que assolavam a comunidade. 

Apesar de já sofrer as consequências da infecção pelo HIV desde julho de 1985, Cazuza só teve seu diagnóstico confirmado em abril de 1987, aos 29 anos, enquanto lançava seu segundo álbum solo, “Só se For a Dois”

Continuou com a turnê do novo disco antes de iniciar seu primeiro tratamento em Boston, nos Estados Unidos. 

Cazuza
Cazuza

A partir daí, enfrentou várias internações e muitas idas e vindas entre os Estados Unidos e o Brasil.

Próximo a sua morte, Cazuza compôs músicas como “Ideologia” (com o verso “Meu prazer agora é risco de vida”), “Boas Novas”, “Brasil” e “Blues da Piedade”. Essas canções foram gravadas no seu mais conhecido  álbum, “Ideologia” (1988). 

Segundo Frejat, ex-companheiro de banda do Cazuza no grupo Barão Vermelho, ter assumido a AIDS nas suas músicas e vida pessoal foi uma atitude muito corajosa. 

“No fim dos anos 1980, o mundo era outro em relação a essa questão. A barra era pesada”, relata Frejat.

Apesar do avanço da doença, Cazuza enfrentou a situação e fez uma turnê nacional com seu show mais importante, “O Tempo Não Para”, dirigido por Ney Matogrosso, seu ex namorado. 

Mesmo com suas forças cada vez mais debilitadas por conta da AIDS, o cantor continuou a fazer aparições públicas até 2 de junho de 1990. 

Pouco mais de um mês depois, na manhã de 7 de julho de 1990, ele faleceu na casa de seus pais, cercado pelo amor e cuidados da família.

Em uma entrevista recente feita pela revista Breeza por Anita Kreep, Ney Matogrosso revelou detalhes da sua relação com o Cazuza nos seus últimos anos de vida. Segue um trecho da entrevista:

O Cazuza tava muito doente já, foi na época em que nós começamos a ensaiar o último show dele, que foi o último da vida dele, e aí ele dizia “Ney, você está com um aspecto tão bom, o que você anda fazendo?” Eu disse “Olha, Cazuza, eu tô tomando daime”, e ele disse “Ah, quero ir com você”. Então nós fomos lá. Levaram ele pra fazer uma estrela no meio da floresta. Estrela você sabe o que é, né? Uma alta dosagem num trabalho fechado, não aquele aberto pro público. Cazuza tava sentado do meu lado e eu falei pra pessoa que tava comandando o trabalho “pode deixar que eu cuido dele”. […] Aí teve um momento em que eu vi um raio de sol batendo no rosto dele, aí ele abriu os olhos e disse assim “é só isso?”. Aí eu entendi que ele tinha captado, e eu disse “Sim, é só isso, Cazuza, é só aceitar, entende e aceita o que você tá entendendo porque é verdade”. Aí quando acabou ele disse “quero chegar em casa rapidamente porque eu quero conversar muito com meu pai e minha mãe”. Nunca soube dessa conversa, também não perguntei se teve. Dias desses a Lucinha tocou rapidamente no assunto dizendo que tinha tido essa conversa sim, mas eu não perguntei o que eles conversaram.

Na entrevista Ney também contou que nos últimos dias de vida Cazuza andava com uma garrafinha do daime. “Ele andava com uma garrafinha que não deixava ninguém se aproximar, porque viajava com aquela garrafinha de daime e só ele tomava, não deixava ninguém se aproximar dela. A reta final do Cazuza, pelo que eu saiba, ele tomou o daime. A reta final da temporada dele. Mas ele tomava dois goles, não um copo”. 

Tanto Cazuza quanto Ney Matogrosso são figuras importantíssimas para a história do movimento LGBTQIA + no Brasil. 

Zé Celso e as drogas 

Zé Celso
Zé Celso

Zé Celso sem dúvidas foi um homem à frente do seu tempo. Diretor, escritor, ator  e encenador desde os anos 1960, conhecido por sua inquietude e irreverência, é o líder do Teatro Oficina em São Paulo. 

Nos anos 1970, sob a influência das experiências da contracultura, ele se destacou como um importante expoente da comunidade teatral, realizando montagens de criações coletivas. 

Sua presença e atuação contribuíram significativamente para a história do teatro nacional, influenciando gerações e principalmente a comunidade LGBTQIA + brasileira.

O Teatro Oficina era um lugar de muitos debates e durante a ditadura, representou a antítese do regime. 

Um lugar seguro para debates sobre política, drogas, religião e principalmente um espaço seguro para a comunidade LGBTQIA + de São Paulo, porque afinal, Zé Celso era assumidamente gay.

Em suas obras fazia questão de incluir os direitos dos homossexuais e das diversas orientações sexuais. 

Sua transparência era total, até de forma perigosa, pois a censura estava sempre presente, principalmente na época da Ditadura.

Zé Celso falava abertamente sobre o uso de drogas e como as drogas o ajudavam no seu processo criativo. 

Comentou em uma entrevista feita pela Folha de São Paulo que, após ter um infarto deixou de usar drogas vasoconstritoras, ou seja, drogas que fazem a contração dos vasos sanguíneos (artérias, veias e capilares).

“Se algum médico ler esta entrevista, me diga quais são os alucinógenos que não são vasoconstritores. Mas eu realmente devo muito à maconha. Sempre me fez muito bem, na criação. Contribui para o relaxamento, para o desbloqueio. Dos alucinógenos, tem a mescalina. Eu concebi “As Três Irmãs”, do Tchecov, com um trabalho profundo com mescalina, que se revelou uma mandala. Houve toda uma descoberta do teatro sagrado através da mescalina. O Artaud me dá isso de volta, agora, com o peiote. A própria origem do teatro… No teatro em Elêusis se comia cogumelo’’.

Infelizmente, Zé Celso faleceu aos 86 anos, em julho de 2023, vítima de um incêndio em seu apartamento na zona central de São Paulo.

Da periferia para o mundo: Ludmilla ícone lésbico e fã da verdinha  

Ludmilla é cantora e compositora de funk da cidade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. 

Possivelmente você já deve ter escutado a música Maldivas, canção escrita pela cantora para sua esposa Brunna Gonçalves; ou ainda alguma notícia sobre o show histórico da cantora no Coachella de 2024.

É recente que Ludmilla assumiu publicamente que é fã da plantinha. Inclusive em uma entrevista no PodPah ela conta que recusou um beck oferecido pela Rihanna em uma festa, pois tinha medo da repercussão que isso poderia gerar na mídia brasileira. 

Além de falar sobre o uso de maconha, Ludmilla também falou sobre sua sexualidade, assumindo ser uma mulher lésbica em 2019, quando divulgou publicamente seu relacionamento com Brunna. 

“Comecei a me relacionar com mulheres aos 16 anos. Depois que comecei, gostei e não parei mais, só que eu não era anônima. Tinha muito medo do que as pessoas iam pensar. Quando assumi a Bru, isso não era algo normal de se ver no nosso meio, no meio do funk em que a gente vivia.” “Eu ouvia: ‘você não pode se assumir se não sua carreira vai acabar’. Mas eu tinha que me libertar. Eu não podia ir a grandes eventos porque tinha medo de desmunhecar, não podia ir com a Bru em grandes festas porque os olhares entregam. Não conseguia ser eu.” 

Infelizmente essa é uma realidade para a comunidade LGBTQIA +. Muitos têm medo de assumir sua identidade por causa da violência social. 

No Brasil as pessoas LGBTQIA + têm 6 vezes mais chances de cometer suicídio do que as pessoas não pertencentes à comunidade. 

Ludmilla fez uma reviravolta em sua carreira e desafiou às normas sociais ao se assumir publicamente lésbica e escrever músicas sobre o amor entre duas mulheres. 

Em 2023 fez um show icônico na turnê do Numanice no Estádio do Engenhão no Rio de Janeiro, em que proporcionou o recorde histórico de doações de sangue para o Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti – Hemorio. 

No mesmo ano recebeu a medalha Pedro Ernesto na Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro pelo ato de solidariedade.

Este foi  um ato histórico e extremamente simbólico para a comunidade LGBTQIA +, pois apenas em 2020, por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), foi aprovada a possibilidade legal de  pessoas LGBTQIA+ poderiam doar sangue.  

Em 2019 a cantora lançou a música ´´Verdinha´´, como o próprio nome diz, acho que já sabemos sobre o que se trata. 

Ludmilla

O deputado Jean Wyllys, primeiro congressista assumidamente gay

Jean Wyllys foi o primeiro  um dos únicos deputados assumidamente gay do Congresso Nacional Brasileiro.

Deputado federal pelo PSOL-RJ, é conhecido por sua defesa dos direitos humanos e pela luta contra as desigualdades no Brasil.

Ele destaca que o enfrentamento da guerra às drogas, que resulta na morte de milhares de pessoas anualmente, principalmente jovens, negros e pobres.

Em 2014, Wyllys propôs o Projeto de Lei 7270, visando regular a produção, comércio e consumo da maconha, como um primeiro passo para a futura regulamentação de todas as drogas.

Para o deputado, a proibição causa mais mortes do que o consumo de qualquer droga, sendo, portanto, essencial romper com a lógica do tráfico e transferir o controle das drogas para o Estado.

Em 2019, após a eleição de Jair Bolsonaro, Wyllys renunciou ao cargo e foi para a Europa com medo de ser perseguido e morto.

Inicialmente, viveu escondido em Barcelona e depois se mudou para outros países da Europa.

Jean tolerou os abusos de homofobia até 2018, mas quando ocorreu o assassinato da vereadora Marielle Franco tudo mudou.

“Quando mataram Marielle percebi que vinham atrás de mim, da minha família. Diante das ameaças recebidas, a polícia nada mais fez do que abrir investigações formais, sem nenhum interesse real em perseguir os responsáveis. Acordei em casa e concluí que, se ficasse no Brasil, ia morrer”, lamentou Jean Wyllys.

Erika Hilton: a primeira deputada trans e negra

Em seu primeiro ano no Congresso Nacional, com mais de 64 mil votos, Erika Hilton (PSOL) foi reconhecida como a segunda melhor deputada do Brasil pelo prêmio Congresso em Foco, realizado em setembro de 2023.

A parlamentar é a primeira mulher trans e negra a ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados. 

Erika, aos 30 anos e com seis anos de experiência na política, tem suas prioridades bem definidas como ativista dos direitos humanos: combater a fome, defender o SUS (Sistema Único de Saúde), defender a descriminalização do porte de maconha pelo STF e valorizar as iniciativas culturais de jovens e periféricos. 

Além disso, ela luta pela equidade para a população negra, combate à discriminação e pelos direitos da comunidade LGBTQIA+, porque a cada 38h uma pessoa LGBTQIA+ é morta violentamente no Brasil. Além disso, lideramos o ranking de países que mais matam membros da comunidade LGBTQIA+, sendo a maioria pessoas trans, dados fornecidos pelo Grupo Gay da Bahia (GGB).

Considerações finais

Além das pessoas mencionadas acima, há outras figuras extremamente importantes, tanto a nível internacional quanto nacional, que impactaram o movimento LGBTQIA+ e a desmistificação do uso da cannabis.
No esporte, por exemplo, há uma grande comunidade LGBTQIA+ que luta diariamente para desvendar os preconceitos sobre sua identidade e também para promover o uso da cannabis medicinal em benefício do seu desempenho profissional.
Graças às pessoas  que lutaram pela descriminalização e legalização da cannabis, bem como pelo movimento LGBTQIA+ nos Estados Unidos, no Brasil e em outros países, hoje podemos acessar informações sobre esses temas.
Mas, vale lembrar que, mesmo no século XXI, ambas as comunidades ainda sofrem muitos preconceitos.
Quais estratégias futuras as comunidades podem adotar para seguir fazendo histórias juntas?

Fonte

BRONSKI, Michal. A Queer History of the United States

PERON, D; ENTWISTLE, J. Memoirs of Dennis Peron How a gay hippy outlaw legalized marijuana in response to the AIDS crisis 

TRAUB, V; BRONSKI, M; HEYAM, K. The LGBTQ + History Book (DK Big Ideas)