Desde abril de 2019, a política de drogas no Brasil foi modificada e guinou rumo a um viés ultraconservador. Entenda o que mudou neste artigo!

Desde abril de 2019, a política de drogas no Brasil foi modificada e guinou rumo a um viés ultraconservador. Na comemoração dos primeiros cem dias de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro lançou a nova Política Nacional sobre Drogas – apelidada de Nova Lei de Drogas – junto ao então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

O texto reitera a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto à legalização de drogas. Com efeito, o DataSenado, por meio de pesquisa de opinião, apurou que 42% dos brasileiros são contrários à liberação da maconha, por exemplo.

Além de envolver também os ministérios da Saúde, Cidadania e Família, as alterações no texto conclamam o combate violento ao crime organizado e estipulam ações criminalizadoras para reduzir a oferta de substâncias ilegais.

Com o adendo, as possibilidades de internação forçada de dependentes foram aumentadas, assim como a pena mínima para o narcotráfico, que torna a ser de oito anos. 

Ainda, com o PLC 37, cujo conteúdo alterou a antiga lei de drogas, o governo passa a dar aval e aporte financeiro às comunidades terapêuticas (CTs), instituições de acolhimento tratamento normalmente ligadas a igrejas, já denunciadas por tortura e maus tratos tanto pelo Ministério Público Federal quanto pelo Conselho Federal de Psicologia.

O Projeto de Lei da Câmara, proposto em 2010 por Osmar Terra, então Ministro da Cidadania, pasta criada resultante da união entre os antigos ministérios da Cultura, do Esporte e Desenvolvimento Social, é controverso, ainda que, antes mesmo da consumação de todos os absurdos, a campanha presidencial sempre tenha dado pistas do que estaria por vir.

Sem freio, eis a locomotiva do retrocesso: em julho de 2019, foi aprovado o decreto 9926, assinado por Bolsonaro. A manobra enxugou o número de membros do Conad de 31 para 14 entidades. Destas vagas, 12 passaram a ser lotadas por figuras ligadas aos ministérios. Osmar Terra preside o conselho.

Também foram recolhidas, do Conad, as cadeiras de representantes da OAB, dos Conselhos Federais de Medicina, Psicologia, Serviço Social, Enfermagem e Educação. Ficaram de fora também os nomeados através da União dos Estudantes e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Sintomático.

Criado em 2006, o Conselho Nacional de Drogas é um órgão superior permanente do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (Sisnad), incumbido de alimentar o debate sobre a política de drogas no Brasil. 

O decreto recente ataca a democracia e ilustra o negacionismo ferrenho à ciência, ambos cultivados por este governo. Cala-se, afinal, a voz da sociedade civil e de especialistas que têm respaldo técnico para discutir a temática. 

A quantas andam a legalização da maconha?

legalização e descriminalização da maconha
Foto: USA Today

A legalização ainda é um sonho distante para nós brasileiros, mas o primeiro passo para a legalização é a descriminalização. A esperança dança na corda bamba de sombrinha desde 2011. De lá até hoje, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) um recurso extraordinário (nº 635.659), oriundo da Defensoria Pública de São Paulo, que pede que a criminalização do porte de drogas para uso pessoal seja considerada inconstitucional.

O apelo já passou pelo crivo de três ministros até o momento. Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso mostraram-se favorável para que sejam imputadas punições administrativas em vez de penais aos usuários de ilícitos. Por sua vez, Barroso pontua que a descriminalização deve ser paulatina, a começar pela maconha. Edson Fachin corresponde à ponderação do colega e, em seguida, pediu vistas do processo.

Ou perdeu de vistas. Com o despacho de Fachin, pareceu que, finalmente, o Supremo iria dar continuidade à querela. Mas, em 2015, o ministro Dias Toffoli, à época como presidente da Casa, retirou da pauta o julgamento, após uma visita de Bolsonaro. Até hoje, o recurso segue sem prazo definido. Ao mesmo tempo, por outro lado, a base do governo agitou a toque de caixa o “sim” à PLC 37.

Nova Lei de Drogas evidencia pensamento arcaico do governo

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) identificou que cerca de 82% dos CTs são atreladas a igrejas e instituições religiosas. Em seu modus operandi, a abstinência, ou castidade, já é praxe de organizações religiosas. Portanto, não têm como foco um tratamento, mas admitir dependentes químicos a uma rotina de atividades sacrossantas: trabalho e oração.

Os crentes defendem que o desenvolvimento do lado espiritual seria um auxílio à terapia. Mas, por si só, a medida afronta o princípio democrático de laicidade do Estado Brasileiro, que roga a desagregação da religião e seus valores sobre os feitos governamentais, imprescindível para a manutenção dos direitos individuais e coletivos.

Sob o viés da saúde, a privação desempenhada como ferramenta terapêutica, técnica que já havia sido superada em legislações anteriores, é ineficaz e fere a Lei 11343/2006, cujo 20º artigo abarca a proposição de meios de redução de danos, a exemplo de países, como Portugal, que elegem ações alternativas em detrimento das repressivas e dão prioridade a estratégias de atenção à comunidade que faz uso de drogas.

Ao incluir as CTs no Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas, estas são mantidas pelos cofres públicos enquanto serviços de referência do SUS, tais quais os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), têm sofrido cortes de gastos, sob o perigo de ficarem à mercê das CTs, por terem de encaminhar pacientes para as organizações.

Ainda, como uma espécie de “Lei Rouanet das CTs”, é consentida a dedução do imposto de renda de 30% das doações de pessoas físicas e jurídicas às entidades. Mas, ao contrário da lei de incentivo à cultura, as comunidades terapêuticas carecem de meios regulatórios, de seleção e prestação de contas.

O então ministro Osmar Terra embasou uma penalização mais rígida aplicada a pequenos traficantes. “Ele está disseminando um vírus. Acho até que pode ter presídio especial para isso. Mas tem que tirar da rua”, opinou Terra, que definiu como “outra mentira” a precaução de que o sistema prisional superlotará”. “É que ele é pequeno para o tamanho da população”, justificou.

Superlotação de presídios e violência policial são subprodutos da política de drogas

Com cerca de 730 mil pessoas encarceradas, segundo levantamento mais recente do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, o Brasil ostenta a terceira maior população em cárcere do mundo em números absolutos, atrás apenas dos EUA (2,1 milhões) e da China (1,7 milhão). Aqui, o índice está para mais de 350 presos a cada 100 mil brasileiros, disparado aceleradamente no último século. ‘Tá feliz, deputado?

O Ministério da Justiça fez a conta: entre 2006 e 2017, houve um aumento de mais de 80% da população carcerária, 727 mil pessoas. Deste total, 200 mil foram encarcerados em cumprimento à Lei de Drogas. Os encarcerados ligados a drogas saltou de 13% para 30% de toda população prisional, conforme a pasta.

Maconha o sistema prisional e a violência policial
Foto: Dazed

Há um pretexto para essa explosão. Sabemos que usuários não podem ser punidos com prisão. No entanto, o enquadramento do infrator como traficante é tomado por uma régua abstrata e subjetiva, já que o texto da lei não define uma quantidade exata de droga para interpretá-la como de consumo pessoal ou não.

Fica, então, a cargo da polícia a diferenciação entre usuário e traficante, com base nas circunstâncias do flagrante do delito, como local e as condições em que se desenvolveu a ação de apreensão, as circunstâncias sociais e pessoais e a conduta e os antecedentes do agente, não com base na quantidade de substância apreendida.

Essa ausência de objetividade desencadeia tratamentos diferentes por policiais com base na classe social e cor da pele do usuário e ajuda a compreender o fenômeno da explosão do encarceramento por drogas, e também fundamenta a violência policial nas periferias. No fim das contas, as condições são revertidas em um filtro de cor, classe e território. Impera o racismo.

Anteriormente à atualização, quem fosse flagrado com entorpecentes, mas fosse réu primário e não apresentasse conexão com quadrilhas, poderia receber diminuição de pena, conforme sentença do juiz. Com a nova medida, qualquer brasileiro preso com droga está sujeito a responder por crime hediondo, mesmo se não ferir absolutamente ninguém e só carregar uma pequena quantidade do narcótico.

No livro Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (2019), Luiz Eduardo Soares joga uma luz e escancara a realidade. Em uma análise estatística, Soares identificou, na cidade de São Paulo, 799 registros nos quais delatavam com exatidão o tipo e a fração apreendidos. Desta soma, 404 ocorrências computaram de 0,01 até 7 gramas de drogas.

Disso, pode-se interpretar, segundo o antropólogo, que os presos não são os traficantes que se impõem tiranicamente pelo uso da força, mas varejistas do comércio de substâncias ilícitas, que têm sido detidos sem porte de arma, sem prática de violência e sem vínculo reconhecido com facção.

Muita gente acaba dentro de uma cela por ínfimas quantidades e, na maior parte das detenções, trata-se de uma parcela pobre da população. Não dá para fingir que não exista uma logística refinada de uso e comércio de drogas nas classes médias e altas dos grandes centros urbanos do Brasil. Mas quem transporta 39kg de pasta-base em um helicóptero voa longe do mesmo sistema de Justiça.

Em sua obra, Soares, co-autor de Elite da Tropa, que deu liga ao filme de José Padilha, conclui que o segundo fator estatístico mais expressivo sobre a incriminação de uma pessoa como traficante é a escolaridade: quem possui menor grau técnico (analfabetos e pessoas com Ensino Fundamental incompleto) têm 3,6 vezes mais chances de ser lida como traficante pela Justiça. Se a pessoa residir em região periférica, dobra a chance de ser acusada por tráfico.

Osmar Terra, arqui-inimigo da Cannabis

Quem louva a maconha como uma planta medicinal já pegou visão de que Terra é um dos mais intragáveis obstáculos frente à legalização da erva no país. O parlamentar, um dos líderes do governo na Câmara dos Deputados, é porta-voz de declarações improcedentes quanto ao uso da Cannabis.

Politica de drogas no brasil
Foto: Revista Fórum

Terra, pessoalmente, armou uma contenda com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que projeta regulamentar o cultivo da Cannabis para pesquisa e produção de medicamentos. Ele, que é médico, classificou como “tragédia” o projeto que liberaria remédios à base da erva.

Quanto ao uso terapêutico, os desatinos, que parecem ter saído de uma reunião de tiozões do Whatsapp, não cessam de ser disparados. Terra desmente o potencial curativo da maconha. Para ele, a única substância que a maconha possui, entre mais de 4 mil, que “cura alguma coisa”, é o canabidiol (CBD) e finaliza:

“Isso é pra atender 2, 3 mil crianças. Não precisa plantar maconha no Brasil pra isso”, afirmou. Não é verdade. A Anvisa estima que até 13 milhões de pacientes são beneficiados com a aprovação da regulamentação do registro e da venda de medicamentos à base de maconha. 

Terra também ousou alegar, como argumento, que, no Brasil, vive-se uma “epidemia grave” ao se referir ao uso de entorpecentes. Para ele, médico de formação, trata-se de um problema mais grave que a incidência de febre amarela ou gripe H1N1, e a liberação pioraria o cenário pintado por ele.

Legalizado, álcool é a droga mais letal

No fim de maio de 2019, o governo censurou uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sob o pretexto de “não concordar” com o resultado do estudo. Ao contrário do que sustentou o então chefe da pasta da Cidadania, o 3º Levantamento Nacional sobre Uso de Drogas pela População Brasileira embasou, estatisticamente, que não há uma epidemia de drogas no Brasil. O estudo custou 7 milhões de reais aos cofres públicos.

Maconha melhor que álcool
Foto: Into the Void Science

Os números revelaram que, na realidade, o maior problema brasileiro é o consumo de álcool, De acordo com o levantamento, a faixa etária média de alcoolemia no país é de 17 anos para meninas e 15 anos para meninos. Sublinha-se o escândalo: sim, adolescentes acessam bebidas alcoólicas, danosas à saúde e antes da idade que a lei autoriza.

Demonstrou-se também que a substância ilícita mais usada no Brasil é a maconha: 7,7% dos brasileiros de 12 a 65 anos já a usaram ao menos uma vez na vida. A Drug Enforcement Administration, entidade norte-americana à frente do controle e combate às drogas, nega que haja casos informados de morte por overdose de maconha.

Em segundo lugar, a cocaína: 3,1% já consumiram o pó. Ao longo do mês anterior ao questionário, 0,3% dos entrevistados afirmaram ter usado a droga. O Brasil é o país com o segundo maior índice de consumo de cocaína no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. A overdose de cocaína pode levar ao óbito por infarto agudo do miocárdio, insuficiência respiratória, acidente vascular cerebral (AVC), hemorragia cerebral ou insuficiência cardíaca.

Mas 44,5% dos brasileiros atribuem ao crack o maior grau de risco de danos à saúde que levam à morte, enquanto o álcool é o principal ator da barbárie. Apenas 26,7% colocariam o álcool no topo do ranking. A droga presente na nem-tão-inofensiva cervejinha, objeto de outros estudos respeitáveis, como o da Organização Mundial da Saúde, averiguando que o uso nocivo de álcool mata mais de 3 milhões de pessoas anualmente. Ou seja, uma em cada 20 mortes.

De todas as mortes atribuíveis ao álcool, 28% dizem respeito a diversos tipos de lesões, como as decorrentes de acidentes de trânsito, autolesão e violência interpessoal; 21% se devem a distúrbios digestivos; 19% a doenças cardiovasculares e o restante por doenças infecciosas, câncer, transtornos mentais e mais condições de saúde.

No final do dia, a guerra às drogas, no Brasil, é sempre vencida pelas próprias drogas e pelos grandes traficantes, que não moram em favelas, ou donos de mega cervejarias. Compartilhe o artigo com seus amigos e familiares para que eles fiquem por dentro de como tem funcionado a política brasileira relativa às drogas 😉