A maconha vem demonstrando potencial como uma alternativa eficaz e segura no tratamento da fibromialgia e da dor crônica. Entenda como isso acontece e veja o que a ciência diz a respeito.

Dores intensas por todo o corpo associadas a outros sintomas como fadiga, distúrbios do sono, problemas de memória e alterações de humor: essas são as principais queixas de pessoas diagnosticadas com fibromialgia. Com causa indefinida, a doença é caracterizada pela dor crônica e generalizada. Estudos apontam que a síndrome atinge mais de 150 milhões de pessoas no mundo. No Brasil, cerca de 2% a 3% da população é acometida pela doença. As mulheres são mais afetadas do que os homens, principalmente entre os 30 e 55 anos de idade. Os dados são da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR).  

Na batalha contra essa doença incapacitante, a cannabis vem se mostrando uma alternativa promissora no tratamento da dor crônica e na melhoria da qualidade de vida de pessoas com fibromialgia. Segundo as pesquisas, o tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD) podem atuar no controle da dor, além de trazer alívio na intensidade dos sintomas, reduz o uso de medicações opióides e corticoides e contribui para retomada da autonomia de grande parte dos pacientes.

E para entender como os estudos comprovam esses benefícios, é preciso conhecer as implicações dessa síndrome crônica.

Fibromialgia e suas implicações na saúde

A fibromialgia é debilitante e impacta de forma significativa a saúde mental e a rotina das pessoas afetadas. A síndrome é um tipo de dor crônica caracterizada por desconfortos intensos em todo corpo, principalmente nos músculos e nas articulações. Além da dor, a pessoa com fibromialgia pode sofrer com outros sintomas associados como fadiga, alterações no sono, problemas de memorização, depressão, ansiedade, formigamentos, dormências, tontura e alterações intestinais. Apesar de afetar mais mulheres, a síndrome também pode atingir crianças, adolescentes e idosos.

Sem causa específica, a fibromialgia provoca uma sensibilidade maior à dor. A doença está relacionada com o funcionamento do sistema nervoso central. A dor não provoca lesões, inflamações e nem deformidades físicas. De acordo com a Sociedade Brasileira de Reumatologia, o diagnóstico pode surgir após eventos graves, a exemplo de traumas físicos, psicológicos e infecções. Geralmente, o quadro começa com dor crônica localizada que pode avançar para o resto do corpo. É como se o cérebro da pessoa interpretasse os estímulos de forma exagerada, ativando todo o sistema nervoso para ela sentir mais dor.

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Mesmo com a grande prevalência, a síndrome não é detectada tão facilmente. Ainda segundo a SBR, o diagnóstico é clínico, onde é avaliado todos os sintomas do paciente. Durante a investigação, é observado a sensibilidade em pontos específicos dos músculos. Após o diagnóstico, o tratamento da doença é baseado em uma abordagem multidisciplinar. Conforme as recomendações dos especialistas, pacientes com fibromialgia podem responder a uma combinação de intervenções farmacológicas como o uso de analgésicos e antiinflamatórios associados a antidepressivos tricíclicos, e intervenções não farmacológicas como  atividade física regular e acompanhamento psicológico. Em contrapartida, a utilização de opióides foi associada a piores sintomas e pior estado funcional e ocupacional em comparação com não usuários desse medicamento.

Por não ter cura, o objetivo do tratamento convencional é manter a enfermidade controlada. Nesse cenário, estudos apontam que o uso da cannabis pode ser um tratamento seguro e eficaz para o alívio de muitos dos sintomas relacionados à doença, melhorando significativamente a qualidade de vida dos pacientes.

Potencial terapêutico do THC aliado ao CBD na redução dos sintomas da fibromialgia

Pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) realizaram um estudo para avaliar o impacto da ingestão do óleo de cannabis (24,44 mg/ml de THC e 0,51 mg/ml de CBD) em 17 mulheres, com média de idade em 51,9 anos, afetadas pela fibromialgia. O ensaio clínico duplo-cego, randomizado e controlado por placebo foi conduzido por oito semanas. Segundo a pesquisa, a dose diária inicial foi uma gota (± 1,22 mg de THC e 0,02 mg de CBD) com aumentos consecutivos de acordo com os sintomas.

A dose média usada na testagem foi de 3,6 gotas por dia (4,4 mg de THC e 0,08 mg de CBD). A pesquisa sugere que iniciar o tratamento com baixas doses de THC (1 mg), com aumentos consecutivos conforme a resposta clínica, possibilita a busca de bons resultados com a menor dose necessária.

No ensaio, foi utilizado o Fibromyalgia Impact Questionnaire (FIQ) nos momentos pré e pós- intervenção durante cinco consultas. O FIQ é um instrumento de avaliação dos sintomas observados na fibromialgia pela American College of Rheumatology (ACR). Composto por 10 itens, o teste analisa a função física, o estado de trabalho, o bem-estar e os sintomas físicos e mentais associados, cada um com uma pontuação máxima possível de 10. Os valores totais variam de 0 a 100, e quanto mais altos significam maior impacto na qualidade de vida do paciente. 

O grupo de mulheres que recebeu o óleo de cannabis apresentou uma redução significativa dos sintomas da fibromialgia (de 75 para 30)  em relação ao grupo que recebeu placebo (de 70 para apenas 61) . A ingestão do óleo rico em THC proporcionou aos pacientes bem-estar e mais energia para as atividades do dia a dia. A melhora nas crises de dor também foram relatadas. Os efeitos adversos comuns a medicamentos, como tontura, boca seca e sonolência, foram bem controlados.

CBD fibromalgia
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Para os autores, os fitocanabinoides podem ser uma terapia de baixo custo, segura e eficaz para reduzir os sintomas e contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes com fibromialgia. Apesar das descobertas promissoras, os cientistas explicam que ainda é preciso a realização de outros estudos para analisar os efeitos a longo prazo. Além disso, a condução de pesquisas com diferentes variedades de canabinóides associados devem ser feitas para ampliar o conhecimento da ação da cannabis nessa condição de saúde.

O estudo foi conduzido em um Posto de Atenção Primária do Sistema Único de Saúde (SUS), em Florianópolis (SC). O óleo com alto teor em THC usado no estudo foi fornecido pela AMA+ME – Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal.

THC e CBD atuam na melhora da qualidade do sono e depressão

Além do potencial de aliviar a dor e fadiga, a associação do THC com CBD também demonstra eficácia na melhora da qualidade do sono em outro estudo. Cientistas italianos apontam que a terapia com cannabis proporciona uma vantagem clínica em pacientes com fibromialgia que sofriam com distúrbios na hora de dormir. Para o estudo, os pesquisadores adicionaram a cannabis ao tratamento analgésico padrão para a fibromialgia. Eles avaliaram 102 pacientes que receberam a prescrição de dois extratos de cannabis diluídos em óleo de THC e CBD.

Segundo a pesquisa, cerca de 50% tiveram uma melhora moderada nas escalas de ansiedade e depressão. O tratamento analgésico padrão foi reduzido ou suspenso em 47% dos pacientes. Para os autores, os resultados mostram a eficácia da cannabis, mas ainda é necessário confirmar esses dados através de outros estudos para identificar subgrupos de pacientes e estabelecer a dosagem e duração mais adequada da terapia.

Em relação ao resultado do estudo, cabe destacar que a depressão é muito frequente em pessoas afetadas pela fibromialgia. De acordo com a SBR, essa condição atinge até 50% dos pacientes e contribui para a piora do quadro. O paciente deprimido também sofre com outros sintomas comuns da síndrome, como problemas do sono e fadiga. Por isso, tanto a depressão quanto a fibromialgia devem ser tratadas devidamente, o que pode evitar a piora nos níveis de dor.

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Eficácia da cannabis na população idosa com dor crônica

Assim como a fibromialgia, outros tipos de dores crônicas podem ser tratadas com o potencial terapêutico da cannabis. Cabe ressaltar que a eficácia da erva no controle da dor é uma descoberta antiga. A propriedade foi descrita há milênios pelo imperador da China, Shen Neng, que se beneficiava da maconha no tratamento de dores articulares e gota.

Esse potencial foi avaliado no controle da dor crônica em um estudo com idosos acima dos 65 anos. Na pesquisa, 2.736 idosos iniciaram o tratamento com a cannabis por seis meses. Após o tratamento, 93% relataram a melhora dos sintomas, principalmente os quadros de dor crônica. Segundo o estudo, a redução do nível de dor foi de 8 para 4, em uma escala de 10. Os efeitos foram redução na intensidade da dor e melhora da qualidade de vida. 

Outro resultado promissor foi avaliado, 18% dos idosos suspenderam o uso de opióides ou reduziram a dose do medicamento. A pesquisa mostrou que o uso terapêutico da cannabis com a população idosa pode ter eficácia e segurança. Entretanto, para os autores, a coleta de mais dados e evidências de ensaios clínicos nessa população ainda é necessária.

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A dor crônica é caracterizada por um incômodo que ocorre por mais de três meses ou caso o paciente não apresente melhoras durante o tratamento. A partir dessa definição, a dor pode ser dos tipos nociceptiva ou neuropática. A primeira não tem a ver com nenhum tecido neurológico, não há dano ou lesão no tecido em si, a exemplo da fibromialgia. Já a segunda pode ser causada por uma lesão ou doença que afeta o sistema neurológico.

Casos de liberação de cultivo da cannabis para o tratamento da fibromialgia

Por causa dos estudos que mostram a cannabis como uma importante aliada no tratamento da fibromialgia, existem casos no Brasil em que o paciente consegue autorização da Justiça para o cultivo da maconha. Entre os mais recentes, está o da Justiça Federal de Vitória da Conquista, na Bahia, que em janeiro deste ano permitiu para um paciente o cultivo da planta para fins medicinais.

Na autorização, o juiz do caso destacou  os benefícios da cannabis para o cuidado de doenças cujo os remédios tradicionais não amenizam danos, considerando como base as informações científicas da relação entre substância e patologias como a fibromialgia.

A possibilidade de cultivo para tratamento foi concretizada após um paciente de Vitória da Conquista entrar com um habeas corpus pedindo para não ser repreendido ou investigado pelo plantio da cannabis, pois sofria com as dores crônicas da doença e os métodos convencionais não têm efeitos para a sua melhor qualidade de vida. Como consequência da ação, o paciente ainda obteve o direito de não ter a sua plantação destruída ou apreendida por autoridades públicas.

Apesar da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitir autorização para o paciente com fibromialgia importar o canabidiol (CBD), vale destacar o fato do mesmo não ter condições financeiras para a importação do medicamento pronto, a exemplo do caso de Vitória da Conquista. Por isso, existe situação na qual a pessoa acometida pela doença solicita aos órgãos judiciais a concessão de salvo-conduto para importar e cultivar as sementes de cannabis, tornando possível a extração do óleo para o uso em tratamentos.

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No final do ano passado, um morador de Joinville, em Santa Catarina, teve decisão judicial favorável para o plantio de maconha com fins medicinais. O paciente, que sofre de fibromialgia, cultiva e depois retira o extrato para o óleo usado no tratamento das dores.

Pelas regras da ação judicial que beneficiou o paciente de Santa Catarina, ele pode fazer o cultivo da cannabis, mas precisa informar para os órgãos públicos competentes a quantidade e destinação do óleo produzido para o tratamento da doença. A sobra da produção do óleo não pode ser descartada em lixo comum, devendo ser usada em processos como a  adubagem do solo. Além disso, não existe autorização para o compartilhamento do óleo com outras pessoas que sofram da mesma patologia.

No Brasil, mesmo com a liberação da Anvisa para a comercialização de medicamentos à base de cannabis, o plantio da ainda é proibido. Por consequência, não é permitido o cultivo para fins recreativos ou  venda da erva para a obtenção de lucros financeiros.

Atualmente, parlamentares têm debatido para que o plantio com fins medicinais seja totalmente liberado, deixando para  a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a responsabilidade pela produção da cannabis no solo brasileiro.

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