Entenda como vai funcionar o plantio de cannabis para pesquisas no Brasil

Em caráter inédito, a Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) receberam aval da justiça para plantar maconha a fim de nutrir suas pesquisas científicas. Originários dos departamentos de agronomia, ambos projetos enlaçam as mãos a organizações que, há anos, fazem malabarismos para dar seguimento aos estudos sobre a planta, e figuram uma extensa lista de instituições brasileiras que prepararam o solo para esta conquista tão grande que é a liberação para as universidades cultivarem maconha.

De pioneirismo, nós, brasileiros, tiramos de letra. Por décadas, a USP (Universidade de São Paulo), através da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, investigou possíveis aplicações farmacêuticas para compostos derivados da Cannabis sativa. Portanto, foi o primeiro laboratório no mundo a demonstrar os efeitos calmantes e antipsicóticos do canabidiol (CBD). Veio de lá, também, o primeiro extrato de CBD desenvolvido no Brasil, presente em farmácias de todo o país.

Por suas vezes, outros centros acadêmicos ousaram ao instituir, de maneira inédita, disciplinas fixas em suas grades curriculares. Foram os casos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), para os cursos de medicina, biomedicina e farmácia, e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde se aprende a endocanabiologia no campo da medicina veterinária.

Aqui, conheceremos mais a fundo as propostas canábicas das federais de Viçosa, da Rural do Rio de Janeiro e da Paraíba e como funciona essa autorização da justiça para o plantio de cannabis nas universidades:

Universidade Federal de Viçosa volta o olhar para a indústria da maconha (e da cerveja)

Em semelhança à UFRRJ, a centenária UFV ostenta o curso de agronomia entre os mais reconhecidos e antigos do país. A parceria selada com a startup ADWA Cannabis conceberá o primeiro trabalho no Brasil de melhoramento genético da maconha. O contrato de parceria entre a universidade e a startup foi publicado no Diário Oficial da União (DOU).

Inicialmente, está previsto o cruzamento de quatro strains vindas da Colômbia. A matéria-prima vegetal será fornecida pela colombiana CANNADROP. A equação resultará em variedades brasileiras, aptas ao uso medicinal e industrial, e adaptadas aos climas regionais, a partir de um olhar lançado sobre a ancestralidade da planta milenar.

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Foto: Beercapp

Cada hibridação deve resultar de 100 a 300 plantas com características diferentes, em um total que pode chegar a 1.200. Elas constarão no Registro Nacional de Cultivares (RNC), conforme regras estabelecidas pelo Ministério da Agricultura para a comercialização de qualquer muda ou semente. 

As etapas de cultivo da Universidade Federal de Viçosa serão informatizadas pela ADWA Cannabis, como garantia de rastreabilidade e controle do experimento. A empresa irá monitorar o acesso à casa de vegetação cedida pela repartição agronômica da universidade, todo o material produzido poderá servir de base para outras pesquisas que vierem a ser elaboradas na UFV.

A estratégia de cooperação com a CANNADROP é, até aqui, inédita para os moldes da indústria brasileira da Cannabis. Para a ADWA Cannabis, a logística preparará o terreno brasileiro para um mercado que deve movimentar US$ 194 bilhões até 2026. 

Para alguns canabistas, não é de se espantar a existência de cervejas à base da maconha. Na internet, circulam imagens do que se vê nas gôndolas dos mercados mundo afora. 

A UFV pretende criar uma disciplina que se dedique ao cânhamo e ao lúpulo, utilizado na fabricação da cerveja, plantas derivadas da família Cannabaceae. Primo-irmão da Cannabis, quer seja sativa ou indica, o estudo do lúpulo promete subir a qualidade da cerveja, sem falar em seus ricos atributos medicinais. Em uma visão ampla, a ideia é atender a uma expectativa compartilhada por especialistas da área jurídica, que antevêem, em menos de dois anos, a autorização do plantio da Cannabis para fins medicinais no Brasil. Dessa maneira, planeja-se instruir os agricultores para um manejo eficiente, baseado nas variedades disponíveis e mais adequadas para nosso clima.

Construção de banco canábico de sementes pela Universidade Rural do Rio de Janeiro

A universidade que leva ‘rural’ em seu nome dá pistas de que se enraizou como seio forte do ensino agropecuário no Brasil. Com 110 anos de bagagem, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro tem lavrado os caminhos para adubar um notável polo de ensino e pesquisa sobre a Cannabis medicinal. 

A UFRRJ é representada por um grupo de pesquisadores dedicados a investigar a erva medicinal em uso humano e veterinário. A organização chamada Canapse (Canabiologia, Pesquisa e Serviços) enseja angariar mais informações que passam pelas áreas de farmácia, química e agronomia, o cultivo será hospedado na sede da entidade, em Maricá. 

O fruto de cooperação técnico-científica entre a UFRRJ e a Canapse tem alcunha própria, Programa Cânabis, e foi tema, recentemente, de uma reportagem na Revista Globo Rural e outros portais de notícias. Assim como acontecerá em Viçosa, os projetos de pesquisa serão registrados formalmente na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e no Ministério da Agricultura.

O trabalho dos estudiosos se concentrará na apuração do material genético da planta: sementes e flores, a partir da percepção de que, mesmo na literatura internacional, quase não há informações sobre o cultivo em clima tropical. É dado que, no Brasil, a proibição de plantio e pesquisas desde os anos 40, erige barreiras ideológicas e preconceituosas, para se ter uma ideia, não há um consenso sequer sobre a classificação taxonômica do gênero Cannabis.

Portanto, A Rural ambiciona a construção de um banco de germoplasma de sementes canábicas. Trocando em miúdos, imagine o banco como um baú de tesouros ou um bunker, cuja missão é preservar as sementes, ainda que aquela cultura seja sumariamente destruída em todos os outros lugares, de modo a evitar o seu desaparecimento completo.

Além dos estudos em manejo, farmácia e melhoramento, a Rural oferta uma disciplina na pós-graduação em Química, onde se debruça sobre o controle de qualidade e aplicação da Cannabis, outra matéria, mas na graduação, deve ser inaugurada em 2021. Frequentemente, as portas também são abertas a alunos, especialistas e pesquisadores de fora da universidade, com a montagem de cursos e oficinas.

Universidade Federal da Paraíba foi precursora de abertura de disciplinas acadêmicas

Paraíba feminina, mulher forte, sim, senhora! O primeiro centro acadêmico brasileiro a fundar uma disciplina que trata da maconha sob o viés medicinal em humanos foi a Universidade Federal da Paraíba (UFPB). A proposta trazida pela professora doutora Katy Lísias Gondim Dias de Albuquerque, integrante do Departamento de Fisiologia e Patologia, a princípio, ganhou corpo nos cursos de medicina, biomedicina e farmácia.

Intitulada ‘Sistema Endocanabinóide e Perspectivas Terapêuticas da Cannabis Sativa e Seus Derivados’, apresenta em seu currículo um apanhado geral de conhecimentos: o contexto histórico e farmacológico da planta e seus derivados, bem como a ação do sistema endocanabinoide nas manifestações clínicas, tratamento e possíveis interações medicamentosas. 

Não à toa, a matéria borrou as fronteiras iniciais e teve abrangência de graduandos em saúde no geral. Estudantes de odontologia, enfermagem, terapia ocupacional, ciências biológicas e psicológicas demonstraram entusiasmo em somar à rede de conhecimento, afinal o sistema endocanabinóide modula o bom funcionamento do organismo humano.

A necessidade de criar a matéria se deu após a experiência da professora Katy em pesquisa e extensão. A docente coordena um grupo de pesquisadores multidisciplinares, fundado em 2016. Quem integra a turma se dedica a investigar e disseminar o conhecimento científico das substâncias terapêuticas presentes nas plantas do gênero Cannabis, o PEXCANNABIS UFPB.

Ela percebeu a existência de uma demanda grande de profissionais de saúde, majoritariamente médicos, que não se sentem seguros em prescrever a medicação por não terem tido nenhum tipo de orientação ou formação enquanto estudantes da universidade.

Indústria do cânhamo é aposta alta em bom rendimento material

Tanto na UFV quanto na UFRRJ, as pesquisas permitirão o cultivo daquela que é considerada a cannabis industrial: o cânhamo. Com menos de 0,3% de tetraidrocanabinol (THC), componente elementar da “brisa”, torna-se desinteressante às práticas de vendagem ilícita. Seu extrato em óleo, como sabemos, é abundante em canabidiol (CBD), ingrediente de fins terapêuticos, dermatológicos e alimentares.O cânhamo também tece fibras empregadas na manufatura têxtil, com incrível rendimento três vezes maior que o do algodão. Em comparação ao eucalipto na fabricação de celulose, a vantagem se consolida. O nocaute sobra, ainda, para a soja, pois as sementes de cânhamo são mais proteicas e têm teor equilibrado de ômega 3 e ômega 6. Na gringa, em países como Estados Unidos, Canadá e Holanda, é comum encontrar nas prateleiras artigos à base da “hemp protein”.

Manobras jurídicas dão as cartas no jogo proibicionista pela maconha no Brasil

A UFRRJ pegou carona no habeas corpus concedido à Canapse para a plantação em 2018, em nome do secretário geral, Ricardo Nemer, atuante como advogado e ativista antiproibicionista. Foi quando a Rural começou a organizar grupos de pesquisa, ao passo em que a Anvisa libera a importação de remédios à base de CBD e traz para o debate o uso da cannabis medicinal.

Por obra do destino, a concessão do direito veio depois de um susto: três anos antes, uma operação da Polícia Civil apreendeu 30 pés de maconha que ele mantinha em casa para uso pessoal e terapêutico.

O inquérito policial contra Nemer acarretou em uma ação criminal, aberta pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, por tráfico de drogas. Com jogo de cintura, ele reverteu o pesadelo em sonho e tomou fôlego para colar com a Canapse, em uma tentativa de atrelar função social ao direito conquistado. O habeas corpus o reconheceu enquanto usuário, pesquisador, e, ainda, a inconstitucionalidade da lei.

Por não haver previsão legal que verse particularmente sobre o plantio da erva, a Canapse procura agir nas brechas legais de modo a estimular a expansão dos limites jurídicos. Embora o uso terapêutico e a plantação para fins de pesquisa seja previsto em lei aprovada em 2006, a falta de regulamentação tem levado a decisões judiciais similares, que autorizam pacientes e associações a produzir a poderosa planta. O plantio já é realidade em duas entidades: a Abrace Esperança, em João Pessoa, e a Apepi, no Rio de Janeiro.

Sem acesso à planta, a tarefa dos cientistas se desdobra em uma prova de fogo. Por vezes, alguns desses estudiosos apelam para a ilicitude em nome da promoção do conhecimento. Alguns recorrem à caríssima importação quando dificilmente conseguem verba ou vencem a burocracia. Outros solicitam à polícia plantas apreendidas, material que, apesar de ajudar, nem sempre é conseguido com rapidez ou apropriado à pesquisa, dada a baixa qualidade.

O Brasil não larga o osso da desconfiança, quando o assunto é maconha. Apesar da nova Lei de Drogas, de 2006, ter excluído a prisão para quem for flagrado em uso da erva (ou qualquer outra droga), o porte ou uso não foi descriminalizado. Em um país que se sustenta, estrutural e institucionalmente, no racismo, a punição acaba por recair sobre os pretos e pobres.

A possível descriminalização do porte de substâncias psicoativas para uso próprio deveria ter sido decidida pelo Supremo Tribunal Federal desde o ano passado. Com três votos a favor dos 11 totais, uma indicação do caminho que o STF deve seguir, o processo foi arquivado depois de o Ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo, decretar seu adiamento.

Quando o feitiço é quem ensina ao feiticeiro

A falsa acusação de Weintraub às universidades federais, há pouco mais de um ano atrás, acabou por tornar-se legalmente verdade, em mais uma demonstração irônica de que a “terra plana” gira e vacilão roda. À época, o ilógico ministro da Educação acusou os espaços de manterem, de forma ilegal, “plantações extensivas de maconha”, em mais uma contribuição ao desmonte da ciência, projeto cuidadosamente praticado pelo governo fascistoide ao qual integra. 

Justiça tem sido feita: com o engrandecimento de estudos favoráveis aos benefícios da Cannabis ao redor do mundo, o Brasil tem ido no encalço, mesmo que em passos tímidos. Para fazer jus ao querido jeitinho brasileiro, gestado e mantido por toques de hipocrisia, enquanto a autorização para o cultivo acontece, o burburinho é de uma ‘legalização silenciosa’ da maconha medicinal no país.

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As atividades científicas precisam estar ao alcance de todas e todos, para uma democratização do conhecimento e a propagação do poder amplamente curativo da planta Cannabis.Se ficou alguma dúvida ou deseja acrescentar alguma informação ao post, sinta-se em casa para adentrar à discussão na caixinha de comentários abaixo!

Maria Paula Marques

Jornalista a serviço da palavra e amadora da fotografia como uma ferramenta de encantamento. O desejo de democratizar uma informação honesta, por meio de uma linguagem cautelosa e, ao mesmo tempo, fluida, me indica a trilha por onde deixo minhas pegadas. Sigam-me os bons!

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