Conheça toda a história do maior ícone do reggae mundial e entenda sua relação com a maconha, planta religiosa para Bob Marley. Leia aqui!

Bob Marley completaria 79 anos no dia 6 de fevereiro de 2024

Bob Marley. Um ser revolucionário por vida. Era da sua natureza  ultrapassar os limites das dores pouco conhecidas em sua história. O aniversariante do dia 6 de fevereiro canta de punho erguido e dissemina uma mensagem de amor. Em 2023, Robert Nesta Marley completaria 78 anos, mas permanece resplandecido como uma lenda. Tornou-se imortal.

Mestiço e pobre, Bob comeu da farinha do desprezo, mas foi nutrido pelo reggae

Bob Marley, nascido Robert Nesta Marley em 6 de fevereiro de 1945, foi um dos músicos mais influentes do século XX e um ícone global da música reggae. Sua vida foi marcada por uma jornada extraordinária, desde sua infância humilde na Jamaica até se tornar um dos artistas mais reconhecidos internacionalmente.

Bob veio à luz e cresceu em Nine Mile, uma vila de St. Ann, na Jamaica. Virou gente em meio a uma família de músicos, em uma casinha no topo da montanha. A rotina campestre do menino e seu clã incluía atividades tais quais cultivar vegetais como batatas, cacau e banana, e ordenhar a vaca.

Bob nasceu do casamento entre um capitão do exército britânico Norval Marley, um homem inglês de 60 anos, branco, e Cedella Marley Booker, jovem nativa da colônia inglesa, com apenas 16 anos. Após o nascimento de Bobby, ela e o filho só voltaram a ver Norval esporádicas vezes.

Quando criança, na Jamaica, Bob foi bastante rejeitado por ser mestiço, segundo conta o cantor Bunny Wailer, integrante da formação original do grupo de reggae The Wailers, ao lado de Bob Marley e Peter Tosh. No seio familiar, a bisavó de Bob, Yaya, o apelidou de “Alemão”.

“Meu pai é branco e minha mãe é preta. Agora, eles me chamam de mestiço ou o que quer que seja. Bem, eu não estou do lado de ninguém. Não estou do lado dos negros nem do lado dos brancos. Estou do lado de Deus, o homem que me fez nascer de uma negra e de um branco”, declarara Robert em entrevista, anos mais tarde.

Com o passar do tempo, na Jamaica, ergueu-se uma grande corporação de construção civil chamada Marley and Plant, assinatura da maior parte das edificações jamaicanas. Eram os parentes paternos de Bob, segundo o cantor.

Sua companheira Rita Marley conta que, em uma ocasião, os dois foram à empresa lhes pedir dinheiro emprestado para comprar um carro, que usariam para distribuir os discos.

Ao entrarem no escritório, foi visível a reação dos funcionários: todos se viraram, afinal Bob tem feições herdadas dos “white” Marley, assim como você, leitor, se parece com seu pai. Mesmo diante do espanto, ordenaram a Bob e Rita que fossem embora, pois não sabiam nada sobre Norval ter tido um bebê.

O desacolhimento serviu de mola propulsora para Bob captar o sentimento do mundo através da linguagem da arte. Passou a irradiar uma mensagem de transformação àqueles que também sofre mazelas.

Durante sua juventude, Marley se mudou para Kingston, a capital da Jamaica, onde se envolveu com a cena musical emergente. Lá, ele formou o grupo The Wailers, junto com Peter Tosh e Bunny Wailer, e começou a ganhar destaque localmente. No entanto, foi sua parceria com o produtor Chris Blackwell e sua gravadora Island Records que impulsionou sua carreira para o cenário internacional.

A cena de rejeição foi substância poética para a letra de Corner Stone. “A pedra que o construtor recusou/Sempre será a pedra principal/A pedra que o construtor recusou/Sempre será a pedra principal”, entoa a canção. Ironicamente, foi Bob quem difundiu o sobrenome ‘Marley’ ao redor do planeta.

Mudança na vida de Bob Marley e a ida para a capital da Jamaica

Aos 12 anos, Robert e sua mãe migraram para a capital da Jamaica, Kingston, um comum êxodo campo-cidade em busca de prosperidade. Foram viver em Trench Town, tido como berço do reggae. Gueto eternizado nas letras de Bob, em Natty Dread, é desenhado um mapa das ruas numeradas da comunidade, do jeitinho como eram.

“Então eu ando até a primeira rua/E então eu ando até a segunda rua para ver/Então eu ando pela terceira rua/E então eu converso com alguns dreads na quarta rua/Natty Dreadlock numa quinta rua/E então eu pulo um muro para a sexta rua/Eu tenho que chegar na sétima rua”, ele canta em um passeio pela memória.

Em Kingston, a infância de Bob foi balizada pela pobreza. O menino Robert tantas vezes andou descalço por ter apenas um par de sapatos ou dormiu com fome. Para o rei do reggae, a semente do gênero musical foi germinada em Trench Town, regada pela urgência em ser criativo como ímpeto de vida e sobrevida.

“Todo o talento da Jamaica vem de Trench Town. É o lugar onde eles costumavam levar os escravos. Então carrega uma vibração pesada”, ilustra Bob em uma entrevista.

Bob Marley e The Wailers

Bob Marley e The Wailers lançaram uma série de álbuns de sucesso, incluindo “Catch a Fire”, “Burnin'” e “Natty Dread”. Suas músicas frequentemente tratavam de temas como justiça social, liberdade e amor, e ele se tornou um símbolo de resistência e esperança para muitos ao redor do mundo.

Bob Marley e os wailers

Além de sua música, Bob Marley também era conhecido por sua forte identidade cultural e espiritualidade rastafári. Ele incorporou esses elementos em sua música e estilo de vida, promovendo a paz, a igualdade e a consciência social.

Infelizmente, a vida de Bob Marley foi interrompida precocemente devido ao câncer, que começou como um melanoma em seu dedo do pé e se espalhou para o resto de seu corpo. Ele faleceu em 11 de maio de 1981, aos 36 anos de idade. Apesar de sua morte prematura, o legado de Bob Marley vive através de sua música atemporal e de sua mensagem de amor, unidade e resistência, continuando a inspirar pessoas ao redor do mundo até os dias de hoje.

A conexão divina com Rastafári traz a Bob uma metamorfose de pensamento

O sentimento de intruso por ser mestiço se apaziguou com o acolhimento oferecido por Mortimmer Planno, líder espiritual rastafári, que foi um mestre para Bob. O encontro dos dois foi uma conexão. Bob aprendeu que todo sofrimento da Jamaica plantava em seu povo uma militância por essência, em uma angústia para achar uma forma de burlar o sistema.

O Rastafári seria, por definição, uma religião de libertação. Prega autossuficiência e autoconfiança ao povo negro e interpreta a Bíblia de modo particular. Em suma, os mandamentos de Rastafári aconselham a como comer, como viver e como tratar as pessoas, amorosamente. Bob acreditava que se praticasse essas coisas, a vida seria graciosa para o todo. One Love.

A maioria dos lugares citados no livro sagrado, como o Jardim do Éden, ficaria em África. A primeira reencarnação de Jesus Cristo, Rasta, teria sido encarnada na Etiópia. Os ensinamentos da doutrina Rastafári aludem que se deve enxergar Deus, Jah, como um homem negro: à própria imagem e semelhança.

Haile Selassie I (1892-1975), o último imperador da Etiópia, seria a segunda vinda de Jesus Cristo. Em Selassie, Bob encontrou seu genuíno pai celeste. O biológico, ele nunca conheceu de verdade. A canção “War” se debruça sobre o discurso de Selassie para as Nações Unidas em 1963.

Em 66, Selassie esteve na Jamaica. Quando o imperador pousou, milhares de pessoas o cercaram e fumavam baseados. A polícia foi incapaz de conter a multidão que compareceu para ver com os próprios olhos O Rei dos Reis.

Bob Marley e os dreadlocks

Daí em diante, Bob passou a levar o Rastafári mais seriamente e deixou crescer os dreadlocks. Os locks simbolizam um voto nazireu de não cortar ou pentear o cabelo durante um certo tempo. Para Bob Marley, os dreadlocks eram sua identidade. 

Bob Marley cantando

Marley e a maconha

Bob era defensor da maconha no sentido de comunhão com a religião Rastafári. A erva sacramental induziria um humor pacífico, feliz e inspirado.

Consciente a respeito de uma alimentação saudável, mantinha uma rotina de exercícios que incluía futebol, também louvado por Bob. Para Rastafári, zelar o seu próprio corpo é zelar o templo do Senhor.

Como bom esportista, Bob era competitivo. Quando disputava partidas de futebol com seus amigos, não jogava apenas para se divertir. Era peça de sua engrenagem criativa: antes de escrever uma música, fumava um baseado, depois corria para despertar. O fruto colhido era a inspiração.

A fé rastafari nas músicas

À medida em que o cantor se aprofundava em sua fé rastafári, mais se entrelaçava à sua música. As letras de Bob Marley são, sobretudo, espirituais.

“Eu não suporto os modos de vida ocidentais. Se eu devo seguir leis, serão as leis de Sua Majestade. Se não são as leis de Sua Majestade, então posso fazer minha própria lei”, sentenciava Marley, que colecionou amores como um marinheiro. Para ele, a monogamia seria uma rasa ideologia ocidental.

A relação de Bob com sua esposa Rita

Por sua vez, Rita declara que ela foi algo além da esposa de Bob: era seu anjo da guarda. Reconhecia a magnitude de seu companheiro e somava à missão praticamente evangelizante de transmitir a palavra Jah. Ela assegura que eles nunca brigaram por conta da suposta infidelidade de Bob. Não sustentavam segredos.

Tão cúmplices assim, Rita pessoalmente convidava as mulheres a se retirarem do camarim, a pedidos do próprio marido quando desejava descansar. Por mais que ela não tornasse aquilo um transtorno, a filha do casal, Cedella Marley, supõe que sua mãe sofria por isso. Bob teve onze filhos de sete diferentes relacionamentos.

A prole de Marley assente que, como pai, Robert era durão. “Sabe, eu sei pessoalmente que meu coração pode ser duro como uma pedra, e ainda suave como a água”, pondera Bob. Seus filhos queixam-se de sofrer preconceito por parte das famílias de outras crianças, que não as permitiam fazer amizades com eles, pois Bob e Rita eram pintados como viciados que “só sabem fumar maconha e tocar música”.

Quem são The Wailers?

Apesar de possuírem a mesma faixa etária, ainda em St. Ann, Bunny Wailer foi responsável por destrancar para Bob, criança, um portal do universo da música. O jovem Bunny, por ter migrado de Kingston, foi exposto mais cedo ao contato com jukeboxes, de onde aprendeu o mento, ritmo folclórico que antecedeu e influenciou outros estilos musicais jamaicanos, como o ska, o rocksteady e o reggae

Bunny costumava fabricar guitarras de bambu e de latas de sardinha. Na verdade, lá em Nine Mile, culturalmente os instrumentos eram todos improvisados, construídos de forma rudimentar pelos nativos. Mas, em uma visão de vanguarda, Bob vislumbrou um futuro promissor para o seu som por meio da guitarra elétrica

O tempo passou. Bunny e Bob se reencontraram, mais tarde, em Kingston e, com Peter Tosh, que sabia tocar guitarra, formaram The Wailers. Os três compunham a primeira formação de The Wailers, primeiramente batizado de The Juveniles, em 1963.

Segundo Bunny, a alcunha The Wailers se deu por uma sacada do próprio povo de Trench Town, que afirmava: “Vocês vieram de um lugar onde o povo chora, então deveriam se chamar The Wailers”, em tradução livre, ‘os lamentadores’.

A saída da mãe de Bob para os Estados Unidos

Aos 17 anos, a mãe de Bob deixou a Jamaica para viver nos EUA. Sozinho, Marley passou a morar no quarto dos fundos do Studio One, arranjado por Coxsone Dodd, fundador da gravadora.

Embora tenham emplacado sucessos no país, Os Wailers ganhavam da gravadora local um salário mínimo. A conta não fechava. Eles brilhavam na Jamaica, mas permaneciam anônimos mundo afora, o que também cutucou Bob a começar seu próprio empreendimento fonográfico, algum tempo depois.

Desenganado, Bob abandonou o grupo e decidiu ir embora da Jamaica para viver com sua mãe, em Delaware, nos Estados Unidos. Antes de partir, Coxsone Dodd aconselhou que Marley se casasse com Rita. Casaram-se em um dia, e no outro, Marley partiu para os Estados Unidos.

A vida de Bob Marley Marley nos Estados Unidos

Nos EUA, trabalhou primeiro como faxineiro. Depois, foi contratado pela Chrysler, onde pilotava uma empilhadeira noite adentro, como descreve em “It’s Alright”, de 1970. Bob sempre esteve profundamente conectado à música e à ganja. Sob risco, cultivava uma plantação de maconha no pátio de sua casa em Delaware, onde a erva era massivamente criminalizada.

Quando voltou dos EUA, Bob, Peter e Bunnie decidiram lançar um selo independente, o “Wail’m Soul’m”. Logo gravaram “Bend Down Low”, que esteve em primeiro lugar nas paradas de sucesso jamaicanas. Finalmente começaram a fazer dinheiro.

Muitos anos e turnês depois, em 1974, com a debandada de Bunny Wailer e Peter Tosh por divergências internas, um background de vozes macias passou a integrar a banda. Entre as coristas de The I-Threes, estava a esposa de Bob, Rita. A parceria durou perenemente.

A lenda em meio a um tiroteio

Na Jamaica, em meados de 1976, o confronto violento entre gangues e polícia se intensificava. As tensões sociais estavam em seu ápice, sob influência da Guerra Fria. As estruturas políticas estavam fragilizadas, reflexo da tardia independência do Reino Unido, há duas décadas.

O primeiro-ministro Michael Manley, do Partido Nacional do Povo (PNP), socialista e companheiro de Fidel Castro, tentava a reeleição em disputa com Edward Seaga, do Partido Trabalhista Jamaicano (JLP). Uns ligavam Seaga à agência secreta americana, a CIA.

Corria um sentimento coletivo de que se Bob regressasse à ilha caribenha, a rachadura ideológica estaria curada. A Jamaica estaria perdida sem Bob. Representantes do governo Manley foram pessoalmente à Inglaterra para persuadir Bob a voltar à Jamaica. Funcionou.

Ônibus abarrotados de pessoas seguiram rumo para recepcioná-lo no aeroporto. Quando aterrissou, os numerosos fãs pularam a barreira em direção ao avião, em um reprise da cena semelhante quando o imperador Selassie visitou a ilha nos anos 60.

Dez dias antes das eleições, que, em uma jogada oportunista, foram antecipadas por Manley, Bob Marley & The Wailers tocariam um concerto pela paz, o “Smile Jamaica”. Calhou que a equivocada associação entre Bob Marley e a campanha de reeleição do socialista, desaprovada por Bob e sua banda, tomou ares trágicos.

No meio-tempo entre sua chegada e o dia do show (precisamente dois dias antes), por alguma razão que até hoje ninguém conseguiu explicar, sete homens armados invadiram a casa de Marley sem que ninguém os impedisse. Lá, também era onde a trupe do The Wailers ensaiava. No momento, os policiais pré-designados para assegurar a casa não estavam em seus postos. Os criminosos nunca foram capturados ou identificados.

Desfecharam 80 tiros contra os músicos. Ninguém morreu. Milagrosamente, Marley sobreviveu a um disparo no peito. O cantor endossa ter sido amparado pelo espírito de Haile Selassie, o imperador da Etiópia, morto no ano anterior. Rita Marley, esposa de Bob, foi atingida por uma bala disparada contra sua cabeça, que ficou presa entre seu couro cabeludo e o crânio sem maiores danos. O episódio foi inspiração para a música “Ambush In The Night

Ainda com curativos, Marley se apresentou por mais de uma hora diante de mais de 80 mil pessoas. Em frente à multidão, a lenda do reggae desabotoou a camisa para escancarar a assinatura da bala na pele, cujo rastro marcou seu peito e o atravessou até o braço esquerdo. Marley continuou com o projétil alojado no corpo até o fim da vida.

Na plateia, via-se eleitores opostos politicamente, uns ao lado dos outros. One Love estava feito. Para selar a união, em um ato de bravura, Bob convidou Seaga e Manley para apertarem a mão em cima do palco e clamou: “Amor. Prosperidade. Esteja conosco. Jah”.

Depois do atentado a tiros, amedrontado, Bob optou por ir embora de vez da Jamaica. Em 1977, fez seu próprio exílio e reuniu músicos em uma casa da rua Oakley, em Chelsea, Londres. A música saciava sua alma. Nessa época, compunha em série, dia e noite.A tentativa de assassinato inspirou o que a revista americana Time considera o melhor álbum de música do século XX, Exodus (1977), enorme sucesso na Europa e EUA. Bob chegou a tocar para dois milhões de espectadores em seis semanas, na Europa.

No meio do caminho, um câncer de pele

Mas a turnê americana de lançamento do Exodus teve de ser adiada porque Bob machucou o dedo do pé, depois de levar um pisão em uma partida de futebol. Em estado bastante agravado, a lesão indicou que o músico sofria de melanoma, uma espécie de câncer de pele. Por ironia, pontua Rita Marley, o carcinoma, na maioria dos casos, mais atinge pessoas de pele clara.

Para conter o espalhamento do melanoma, os médicos ingleses recomendaram que o dedo fosse removido. Entretanto, por ser seguidor de preceitos do rastafári, Bob considerava o corpo humano como algo sagrado e, portanto, não poderia ser modificado. Negou-se a amputar o dedo. Acabou por consultar outro especialista, que garantiu não ser necessário mutilar o dedão, somente uma parte dele. Assim o fez. Poucos meses depois, Bob Marley viajava em turnê e deixava de escanteio a doença maligna.

A independência do Zimbábue teve som de reggae

A independência do Zimbábue em 1980 foi um momento histórico de libertação e esperança para o povo zimbabuense, e surpreendentemente, teve o som vibrante do reggae como trilha sonora para essa conquista. Enquanto o país se preparava para deixar para trás décadas de domínio colonial britânico, a música de artistas jamaicanos, particularmente do icônico Bob Marley, tornou-se um hino de resistência e inspiração para os zimbabuenses em sua luta pela liberdade.

Bob Marley, com sua mensagem de paz, justiça e libertação, encontrou ressonância em lugares muito além de sua terra natal. Suas músicas, como “Zimbabwe”, “Africa Unite” e “Redemption Song”, ecoaram nos corações e mentes daqueles que buscavam emancipação e autodeterminação, incluindo os zimbabuenses que lutavam contra o regime colonial.

O reggae, com suas batidas pulsantes e letras profundas, tornou-se um símbolo de resistência e esperança não apenas na Jamaica, mas em todo o mundo, alimentando os movimentos de libertação e os esforços pela igualdade e justiça. No Zimbábue, as músicas de Bob Marley e outros artistas reggae se tornaram hinos não oficiais da independência, servindo como uma trilha sonora para o movimento de libertação e para a jornada em direção à autodeterminação.

Robert Mugabe ainda não aparentava ser um déspota quando seu homônimo, Bob Marley, subiu ao palco do Estádio Rufaro para tocar na cerimônia de independência do Zimbábue, em abril de 1980. Era consenso que o rei do reggae seria a melhor atração para se apresentar na festa que celebraria o fim do governo de minoria branca na antiga Rodésia, após anos de guerra civil.

Bob tinha recém-lançado o álbum Survival, que perscrutou suas críticas ao sistema capitalista e ao racismo institucionalizado. No LP, uma canção chamada Zimbabwe foi gravada em apoio aos guerrilheiros que enfrentavam o governo branco da Rodésia.

Marley, portanto, acompanhava a guerra de libertação. Mais ainda: sua música deu tom à luta. A Frente Patriótica ouvia canções motrizes, como Get Up, Stand Up. O reggae consistia tanto uma fuga como uma aspiração no front de batalha.

O cantor usou dinheiro do próprio bolso para bancar o translado da aparelhagem de som e de iluminação, já que o estado não teria condições de subsidiar o custo.

De Londres, aterrissou no Aeroporto de Harare protegido por um forte contingente policial, com 21 toneladas de equipamento e um sistema de som de 35 mil watts trazidos em um boeing 707.

Um dia depois da chegada, Bob fumou maconha com produtores da erva em Mutoko, cidade situada a 143 quilômetros da capital. À tarde, foi para o estádio, onde, pela primeira vez, a bandeira verde, dourada e preta da República do Zimbábue foi hasteada.

O gramado estava lotado. Mas o artista se frustrou ao tomar ciência que o concerto seria destinado apenas a membros do novo governo e convidados. Do lado de fora, milhares de pessoas ansiavam curtir o espetáculo. Os barrados foram dispersados covardemente pela polícia com o uso de bombas de gás lacrimogêneo.

O gás alcançou o palco e a banda teve de sair às pressas, para só retornar momentos depois. Bob permaneceu ali. “Agora eu sei o que é um verdadeiro revolucionário”, disse ele à sua mulher Rita, no backstage. Passada a confusão, no outro dia, o cantor anunciou que faria outro show de graça, em generosidade às pessoas que não puderam assistir.

Assim, quando o Zimbábue finalmente declarou sua independência em abril de 1980, após anos de luta e resistência, o espírito vibrante e unificador do reggae ressoou nas ruas, celebrando não apenas a conquista política, mas também a força e a resiliência do povo zimbabuense. A independência do Zimbábue teve som de reggae, uma lembrança duradoura do poder transformador da música na busca pela liberdade e pela justiça em todo o mundo.

Com swing, o reggae orquestrou revoluções

No reggae, a proporção de três batidas para quatro faz com que imaginemos a próxima, para, então, senti-la. É um efeito hipnótico. Isso porque o ritmo se constituiu da ilusão de ter mais guitarras tocando quando, na verdade, o que se ouve é o delay do instrumento. Uma nota soa e o equipamento a repete com um pouco de atraso.

Se a bateria ressoa os batimentos cardíacos, o baixo é como a espinha dorsal, ambos instrumentos vitais para a construção do estilo. O reggae incorpora funk, soul, R&B, jazz… A conquista da Independência da Jamaica, em 1962, despertou nos artistas jamaicanos o desejo de elaborar uma música original, com uma linguagem precisa que transpusesse a efervescência que se vivenciava na ilha.

Assim, despontou um ritmo ímpar, que mistura elementos de músicas indígenas jamaicanas, como o mento, calipso e a cumina, e do ska, advindo da sonoridade norte-americana, mas que punha toda ênfase em uma batida diferente da qual normalmente se realçaria. Descompassado em vez de cadenciado. Uma melodia, substancialmente, transgressora.

“Mas isso é um xotezinho muito do safado”. O jeito faceiro de Dominguinhos logo deslindou o reggae, quando teve o ritmo apresentado por Gilberto Gil, nos anos 70. Nas linhas de Nine Out Of Ten, gravada por Caetano Veloso em 1972 para o disco Transa, o ritmo jamaicano foi registrado pela primeira vez na música brasileira. 

Em inglês, Caetano canta que desceu até Portobello Road, em Londres, atrás daquele som. É que Portobello Road era endereço de várias lojas de jamaicanos e africanos, e abrigava uma feira livre.

“Eu me apaixonei pelo ritmo junto com Péricles Cavalcanti, que gostava de passear comigo por Portobello. Nem sabíamos ainda o nome do novo ritmo. Quando aprendemos, passamos a repeti-lo em conversas, com muita excitação. Ouvir a música dos jamaicanos naquela rua me fazia gostar de viver, ajudava a superar a saudade do Brasil”, lembrou Caetano ao jornal Zero Hora.

Bob Marley em uma aparição meteórica no Brasil

Em 1980, o ícone do reggae esteve por dois dias no Brasil para abrilhantar a festa de lançamento de uma gravadora, no Morro da Urca. Marley pausou as gravações do disco “Uprising” e subiu em um jato particular de Londres com destino ao Rio de Janeiro.

Primeiro, a aeronave pousou em Manaus, no Amazonas. O que seria uma parada de reabastecimento verteu momentos de tensão com a Polícia Federal. O Brasil gozava de um abrandamento da ditadura, mas a estrutura militar não estava confortável com a vinda do astro, afamado por fincar bandeiras em prol do pan-africanismo e da legalização da maconha. 

Após horas de negociação, o avião foi liberado, com ressalvas: os agentes não carimbaram o visto de trabalho do cantor, o que o impediu de se apresentar no país, sob risco de prisão.

No dia seguinte à chegada, a lenda do reggae deu uns rolês pelo Rio. Corre a informação de que ele foi à favela da Rocinha, apesar de imagens ou relatos dessa suposta visita serem escassos. Mesmo que já fosse uma estrela internacional, o cantor não era muito famoso no Brasil, então pôde circular sem ter de lidar com assédio de fãs.

Futebol na casa de Chico Buarque

Ainda na quarta-feira, durante aquela que foi sua única, e meteórica, passagem no país, o jamaicano exibiu apenas suas habilidades futebolísticas em uma pelada histórica no campo do time Polytheama, fundado pelo compositor Chico Buarque, na Barra da Tijuca.

Artistas como Moraes Moreira e Toquinho foram escalados para a “pelada” de 20 minutos, que teve a adesão do então craque da seleção brasileira Paulo Cezar Caju, ídolo admirado pela estrela do reggae. A partida deu vitória de 3 a 0 para o time do jamaicano, com gols dele próprio, de Chico e de Caju. No time adversário, jogaram figuras como Alceu Valença.

Presenteado com uma camisa 10 do Santos, Bob abriu um sorriso ao distinguir o uniforme e o número do rei Pelé. O artista confessou aos jornalistas que, de música brasileira, só conhecia Gilberto Gil, que havia regravado uma versão de “No Woman No Cry” como “Não chore mais“. Gil dedicou um álbum inteiro a releituras e regravações da obra de Bob, intitulado Kaya N’Gan Daya. Formidável.

O samba e o reggae

“O samba e o reggae são a mesma coisa, têm o mesmo sentimento de raízes africanas”. Bob decifrou a afinidade ao desembarcar na cidade maravilhosa, no dia 18 de março, terça-feira, em reportagem publicada pelo jornal O Globo.

Da viagem, sobraram mais do que memórias. Na volta para casa, Marley dedilhava o violão quando compôs o megahit “Could You Be Loved”, lançado no último disco lançado por ele ainda em vida. Repare: está lá, nos primeiros acordes da gravação original, o barulho de uma cuíca comprada no Rio, fragmentos do DNA brasileiro na eternizados na obra do jamaicano, que foi embora com o desejo de reaparecer para um concerto no Brasil. Nunca aconteceu…

A precoce e dolorosa despedida de Bob Marley

Ainda em 1980, o mundo se abalou com a notícia de um câncer que se alastrou para o cérebro, pulmão e estômago. O melanoma, diagnosticado em 1977, se acentuou após Bob desmaiar enquanto corria no Central Park, em Nova York, em meio a uma agenda intensa de apresentações. Nos meses seguintes, a saúde do músico se deteriorou.

Em sua derradeira passagem de som, no ensaio para o que seria sua última apresentação, em Pittsburgh, a banda recorda que o cantor entoou por duas horas ininterruptas a canção “(I’m) Hurting Inside”, em um transe. A última performance de Bob em um palco foi legendária e rendeu uma gravação ao vivo.

Os dreads caíram com a quimioterapia. Nos seus últimos dias, Bob teve um derrame que o impossibilitou de tocar guitarra. “Eu estou machucado por dentro/Eu estou machucado por dentro/Oh, escute meu choro, escute meu choro, yeah”, enternecia.

Bob estava em tratamento holístico, na gelada Alemanha, quando soube que sua morte seria inevitável. Ele tentou voltar para sua casa, na Jamaica, para passar seus últimos dias entre familiares, mas o esforço foi em vão. Não aguentou completar a viagem.

No caminho, o jato teve de pousar em Miami, onde Robert Nesta Marley descansou de uma vida aguerrida. Elevou-se alto ao céu em 11 de maio de 1981, aos 36 anos de idade.