Em um mundo onde a dualidade marca presença em quase todas as esferas da vida, duas questões se destacam pela ironia de seus contrastes: o proibicionismo em torno da comercialização da planta fêmea da maconha e a negligência histórica com que são tratados o prazer, os cuidados e as pesquisas envolvendo o universo feminino. Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e publicada no European Journal of Neuroscience que a cannabis, especificamente através de seu componente THC, pode ser o caminho para desvendar novas dimensões do prazer feminino, sugerindo que a planta, tão envolta em controvérsias, carrega em si potenciais inexplorados que vão muito além do que a proibição e o preconceito permitiram observar.

Enquanto a proibição da cannabis se enraíza em séculos de estigma e desinformação, a busca pelo entendimento e valorização da satisfação feminina caminha a passos lentos, muitas vezes esbarrando em tabus e preconceitos antiquados.

Conexão neurotransmissora e o prazer feminino

A pesquisa, conduzida com rigor científico em ratos de laboratório, explora a interação entre o THC e os hormônios femininos, como estradiol e progesterona, revelando que esta substância consegue influenciar positivamente a “resposta sexual” feminina. Sandra Sá, uma das mentes brilhantes por trás do estudo, explica que o THC atua diretamente sobre os neurotransmissores reguladores, como o glutamato e o GABA, podendo tanto ativar quanto inibir os neurônios responsáveis pela reação sexual.

O que o estudo enfatiza, e que merece atenção especial, é a capacidade do THC de aumentar a ativação dos mecanismos que desencadeiam a resposta sexual feminina, ao mesmo tempo, em que prolonga essa resposta ao inibir outros estímulos que normalmente a finalizariam. O destaque da pesquisa também se dá sobre o sistema endocanabinóide, um componente vital do nosso organismo que influencia desde o humor até a percepção da dor e o comportamento corporal. 

A pesquisa sugere que a alteração desse sistema, provocada pelo consumo de cannabis, pode ter efeitos significativos na ativação sexual feminina, oferecendo uma nova perspectiva sobre a intersecção entre a erva, prazer e saúde de pessoas com útero.

Horizontes ampliados na vida sexual das mulheres

Ao simular um “consumo recreativo” humano por meio de doses baixas de cannabis oferecida aos ratos, os pesquisadores puderam observar os potenciais benefícios que um uso moderado e consciente da planta pode trazer para a vida sexual das mulheres.

Falando sobre revolução verde e despertar para o autocuidado feminino, conversamos com Nanda Amado, uma das pioneiras na intersecção entre a fitoterapia e o prazer feminino. Fitoterapeuta e educadora em saúde, com foco  em Ginecologia e cannabis, ela está redefinindo o que significa cuidar da saúde feminina em uma era onde o tabu encontra a ciência. 

Em uma conversa franca, Nanda compartilha sua jornada, desafios e as perspectivas que a cannabis pode trazer para as mulheres em busca de bem-estar.

Cannabis no bem viver feminino

“Minha viagem para a fitoterapia começou com a farmácia viva,” revela a fitoterapeuta, relembrando as raízes do que diz ser considerado sua missão. Confrontada com as lacunas de um sistema de saúde que muitas vezes ignora as necessidades femininas, eu me vi puxada para a doulagem — suporte dado por uma doula às gestantes e parturientes, focando em apoio emocional e físico. E, com essas ferramentas em mãos, a cannabis logo se mostrou não apenas como um interesse, mas como uma necessidade de estudo.”

Três anos atrás, um curso na Unifesp foi o divisor de águas, abrindo seus olhos para o poder dos fitocanabinoides no cuidado integral. “Mas quando se trata de cannabis e prazer feminino, estamos navegando em águas quase inexploradas,” ela aponta, destacando a escassez de estudos focados no prazer feminino sem o viés da reprodução.

Nanda Amado, Fitoterapeuta Canábica – @nandaaamado

Repensando o Sistema reprodutivo feminino

Com um certo tom de indignação, Nanda questiona a linguagem que usamos para falar sobre nossos corpos, especialmente a discrepância entre os termos “sistema reprodutivo feminino” e “sistema sexual masculino”.

 “Essa diferença de terminologia já sinaliza um problema,” ela argumenta, chamando atenção para a necessidade de uma mudança de perspectiva.

Dor, Prazer feminino e Cannabis

Em sua prática, Nanda observou uma constante: a luta feminina com o prazer, frequentemente ofuscada por disfunções, patologias e dores crônicas. “Dor crônica é quase um rito de passagem para muitas de nós, diminuindo não só o prazer sexual, mas a alegria de viver,” ela explica. “E aqui, a cannabis tem um papel transformador.” Ela fala sobre condições como vaginismo e endometriose, onde o diagnóstico e tratamento ainda são campos minados de desinformação e frustração. 

“A cannabis pode ser uma aliada poderosa, oferecendo não apenas alívio, mas também um caminho para redescobrir o prazer.”

A vibe é de muita empolgação ao ver os efeitos positivos dessa união entre fitoterapia e cannabis, revolucionando o bem-estar feminino. “Captar mudanças reais, rápidas e em várias dimensões na vida das minhas companheiras é algo que me deixa animada,”

A fitoterapeuta enfatiza a importância de nossas raízes latino-americanas nesse contexto, apontando para a rica tradição de práticas de saúde históricas e ancestrais, além de uma botânica diversa que se harmoniza perfeitamente com as propriedades da cannabis e enriquece as possibilidades de cuidado e bem-estar.

Ela prossegue, ilustrando como a integração da cannabis com outras plantas locais pode criar uma prática holística de saúde e prazer. “Então, em nossos territórios, temos plantas que, com os potenciais da maconha, podem proporcionar uma prática de estar, de bem viver, e de prazer para pessoas com útero.”

Concluindo que a fitoterapia, enraizada na tradição e na ciência moderna, pode abrir caminhos para uma vida mais plena e satisfatória.

Nova onda de descobertas da ciência e o prazer feminino

Enquanto a ciência ainda está engatinhando para entender todas as interações benéficas da erva, as histórias de quem já experimentou as vantagens da cannabis afirmam que a planta é um divisor de águas na vida sexual das mulheres.

A ideia é que uma dose bem ajustada pode fazer toda a diferença, elevando orgasmos e dando um up na libido. Isso acontece porque a cannabis tem o poder de aguçar os sentidos e mandar embora aquelas sensações e sentimentos que atrapalham o desejo, como o stress, a insônia e a dor.

Pesquisas sobre o impacto da cannabis na libido ainda são escassas, muito devido às dificuldades de financiamento e à ilegalidade federal da planta em diversos países. A maioria dos estudos existentes se baseia em questionários, que tendem a refletir as experiências de usuários frequentes de cannabis, dificultando conclusões firmes sobre a população em geral. Além disso, essas pesquisas raramente fornecem informações precisas sobre dosagem, método de consumo ou timing.

A Cannabis no quarto

Ainda assim, olhando para o que já foi descoberto, parece que muitas mulheres que usam a cannabis dizem que sim, ela dá uma melhorada no sexo. Tem gente importante na área da saúde, como a Dra. Becky K. Lynn, que desenvolveu um estudo em 2019, e destacou que entre as mulheres entrevistadas em uma clínica de obstetrícia e ginecologia, 34% usaram cannabis antes da atividade sexual e a maioria relatou aumento do desejo sexual, melhoria nos orgasmos e diminuição da dor.

Além disso, algumas mulheres utilizam a maconha para administrar sintomas da menopausa, como ondas de calor, suores noturnos e insônia, que podem afetar negativamente a libido. Um levantamento online com mais de 200 usuários de cannabis revelou que quase 60% sentiram um aumento no desejo sexual, enquanto cerca de 74% relataram maior satisfação sexual.

A recomendação “comece com pouco e vá devagar” é um conselho valioso, sugerindo o início com doses mínimas e o ajuste gradual conforme a resposta do corpo.

Métodos de consumo para o prazer feminino

A escolha do método de consumo também é fundamental. Especialistas recomendam óleos ou vaporizadores de flor de cannabis, que permitem um controle mais preciso da dosagem e uma ação mais rápida e previsível.

É importante lembrar que a libido é influenciada por múltiplos fatores, e problemas relacionados ao desejo sexual podem necessitar de avaliação médica ou psicológica. Em casos de dor durante o sexo, por exemplo, é essencial buscar uma avaliação ginecológica completa. A cannabis pode oferecer alívio para alguns sintomas, mas entender e tratar as causas subjacentes é crucial para uma saúde sexual plena.

Neste contexto, a cannabis se apresenta não como uma solução universal, mas como uma opção entre várias para explorar e potencialmente enriquecer a experiência sexual feminina. À medida que a pesquisa avança e o diálogo sobre cannabis e saúde sexual se expande, abre-se um caminho para abordagens mais informadas e conscientes que valorizam o prazer e o bem-estar feminino e das pessoas com útero.