A maconha pode ser uma alternativa eficaz contra os sintomas e efeitos colaterais no tratamento dos vários tipos de câncer. Entenda o que a ciência diz sobre essa relação.

Considerado um problema grave de saúde pública, o câncer está entre as principais causas de morte no mundo e é responsável por 9,6 milhões de óbitos por ano. No Brasil, a estimativa é de 625 mil casos novos da doença para 2021. Os dados são do Instituto Nacional de Câncer (Inca). Na busca por tratamentos menos invasivos para a doença, a cannabis pode ser uma alternativa na redução dos sintomas e efeitos colaterais da radioterapia e quimioterapia, melhora da qualidade de vida e até regressão de tumores.

De acordo com o Inca, o câncer é um termo utilizado para definir o agrupamento com mais de 100 diferentes tipos de doenças que têm em comum o crescimento desordenado de células. Essas células tendem a se dividir rapidamente e geralmente são muito agressivas e incontroláveis, provocando a formação de tumores, que podem se alastrar para outras regiões do corpo.

As diferentes tipologias do câncer correspondem aos diversos tipos de células no nosso organismo. Quando começam em tecidos epiteliais (pele ou mucosas) são identificados como carcinomas. Se iniciam nos tecidos conjuntivos (osso, músculo ou cartilagem) são denominados sarcomas. Outras características que diferenciam os vários tipos da doença entre si são a velocidade de multiplicação das células e a capacidade de invadir tecidos e órgãos próximos ou distantes, conhecido como metástase. Esse processo causa problemas sérios e, por isso, é muito importante que seja detectado e tratado precocemente.

Nesse contexto, o potencial terapêutico da cannabis pode ser aliado no tratamento dos diferentes tipos de câncer. Entre os mais recorrentes, estão o câncer de mama, pulmão, pele não melanoma, cólon e reto, próstata e estômago.

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CBD e THC podem atuar no alívio das dores do câncer e dos efeitos causados pela quimioterapia

Cada vez mais conhecidos pelo potencial terapêutico em várias doenças, o canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) também podem ser aliados ao tratamento de pacientes com câncer. Para chegar a essa descoberta, cientistas do Hospital Sírio Libanês e da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo analisaram os casos de dois pacientes com tumores malignos de difícil controle. Além do tratamento convencional de quimiorradiação e quimioterapia, eles utilizaram cápsulas de CBD e flores vaporizadas com THC. O estudo foi publicado em 2019 no periódico internacional Frontiers in Oncology.

Os testes foram realizados em dois pacientes que sofriam com os tratamentos convencionais de radioterapia e quimioterapia. Cabe destacar que os dois métodos são utilizados para o tratamento de diferentes tipos de câncer. Ambas podem causar uma série de efeitos colaterais, como fraqueza, cansaço, diminuição da imunidade, vômitos, queda de cabelo, perda de peso, reações na pele. Nesse cenário, o uso da cannabis apresenta grande potencial na redução dos sintomas gerados pelas referidas terapias. Para o estudo, o canabidiol foi utilizado na forma de cápsula antes da radioterapia em uma dosagem tolerável. Segundo o texto, os pesquisadores realizaram ressonâncias após a quimiorradiação dos pacientes para avaliar o desenvolvimento do tratamento e o efeito do CBD.

Os pacientes tiveram respostas clínicas e de imagem satisfatórias nas avaliações. Paula Dall’Stella, uma das cientistas responsáveis pelo estudo, relatou em entrevista à Galileu, que um dos pacientes apresentou uma quase “remissão completa”. Esse termo é utilizado na medicina para apontar quando não há sinais de atividade da doença, entretanto, não dá para identificar como cura. Ainda de acordo com a cientista, o outro paciente apresentou uma pseudoprogressão, indicativo de que o tratamento estava funcionando.

A partir disso, os pacientes relataram que a ingestão das cápsulas de CBD e uso das flores vaporizadas em THC aliviou os sintomas de dor, náusea, vômito e fadiga. Mesmo com resultados promissores, os autores do estudo desejam realizar mais pesquisas com maior número de pacientes.

Para os pesquisadores, a relação do uso da cannabis e melhora dos pacientes, pode ser entendida através do sistema endocanabinóide que desempenha um papel importante nas diversas reações bioquímicas do corpo humano e está profundamente relacionado ao equilíbrio interno. Esse sistema é composto pelos receptores canabinóides (CB1 e CB2), os seus ligantes endógenos, os endocanabinoides e as proteínas envolvidas na sua síntese e degradação.

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É como se o sistema endocanabinóide fosse uma comunicação entre o cérebro e o corpo. Ele está envolvido em diversos processos fisiológicos, a exemplo da modulação de todos os eixos endócrinos, a modulação da dor, regulação da atividade motora, o controle de processos cognitivos, a modulação da resposta inflamatória e imunológica, a ação antiproliferativa em células tumorais, o controle do sistema cardiovascular, entre outros. 

Além disso, desempenha também um papel importante na modulação do apetite, ingestão alimentar e balanço energético, e em órgãos periféricos como o tecido adiposo, fígado, músculo esquelético e trato gastrointestinal. Sendo assim, o canabidiol interage com o sistema endocanabinóide, atuando de forma mimética aos endocanabinoides naturais em nosso organismo, oferecendo os efeitos benéficos.

Cannabis pode matar ou inibir células cancerígenas

Uma forma modificada de cannabis pode matar ou inibir células cancerígenas sem afetar as células normais. A constatação é de uma pesquisa da Universidade de Newcastle, na Austrália, publicada em julho de 2020. O estudo, conduzido pelo pesquisador Matt Dun,  levou três anos para ser feito e apresenta uma cepa específica e modificada da planta que é capaz de destruir alguns tipos de células cancerígenas sem causar danos às células saudáveis do corpo humano.

A cepa da cannabis utilizada para o estudo, chamada de Eve, possui alta concentração de canabidiol, mas foi alterada para conter menos de 1% de tetrahidrocanabinol. A equipe ainda fez comparações entre a cannabis com e sem THC, mas com níveis elevados de CBD. Nas análises, eles descobriram que a versão enriquecida com CBD era mais eficaz em matar células cancerígenas do que as variedades de THC em casos de leucemia e glioma de tronco cerebral pediátrico.

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Segundo o autor do estudo Matt Dun, a versão rica em CBD demonstra “maior eficácia, baixa toxicidade e menos efeitos colaterais, o que potencialmente a torna uma terapia complementar ideal para combinar com outros compostos anticâncer”. A próxima etapa do estudo vai investigar o que faz com que as células cancerígenas sejam sensíveis e as normais não, além da relevância clínica e das respostas nos outros tipos de câncer.  

Apesar dos resultados animadores, o cientista ressalta a necessidade e importância de entender o mecanismo para encontrar maneiras de adicionar outras drogas que possam aumentar os efeitos da cannabis. Por isso, ele alerta que a versão da planta estudada ainda não está pronta para uso clínico como um agente anticâncer.

“Esperamos que nosso trabalho ajude a diminuir o estigma por trás da prescrição de cannabis, especialmente variedades que têm efeitos colaterais mínimos, especialmente se usadas em combinação com as terapias padrão de tratamento e radioterapia atuais. Até então, porém, as pessoas devem continuar a buscar o conselho de seu médico habitual”, explica o pesquisador.

Questões acerca do uso da cannabis no tratamento do câncer

No âmbito do uso medicinal para o tratamento do câncer, a manipulação da cannabis gera dúvidas cujas respostas começam a ser respondidas pelos estudos que envolvem a planta. Entre as dúvidas e informações mais importantes, vale destacar:

O uso da Cannabis medicinal pode gerar aquela sensação conhecida como “brisa”?

Do ponto de vista técnico, a sensação de “brisa” depende da forma como o tratamento é realizado. Existem centenas de tipos de cannabis, dentre as quais estão aquelas que geram alguma sensação de euforia, a conhecida brisa, e as que não geram efeitos sensitivos. No geral, as plantas ricas em canabidiol, usadas no uso medicinal, não geram esses efeitos. O melhor tipo de planta e a dosagem para o tratamento do câncer varia de pessoa para pessoa, considerando fatores como as suas necessidades clínicas.

Qual paciente com câncer pode fazer uso da cannabis no tratamento da saúde?

Segundo a Anvisa, a autorização para a importação da cannabis leva em consideração que o paciente tenha tentado o tratamento para determinado sintoma, mas não tenha obtido resultado positivo com os meios disponíveis. Como exemplo, é possível pensar em alguém que não consiga solucionar uma dor causada por um tipo de câncer, ainda que tenha feito uso dos medicamentos e cuidados possíveis no Brasil. Nesse caso, ela pode solicitar a importação da cannabis para tentar aliviar o referido sintoma.

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Existem efeitos colaterais para o tratamento do câncer com a cannabis?

De acordo com os estudos feitos sobre o uso da substância no tratamento de pacientes oncológicos, os efeitos colaterais são raros. No entanto, a quantidade e tipo de medicamento utilizado são fatores que podem causar alguns sintomas para a pessoa que está recebendo o cuidado de saúde. Por exemplo, os óleos ricos em CBD podem causar alterações no funcionamento intestinal, como o número de evacuações e consistência das fezes. A sensação de maior sonolência é outro efeito que pode aparecer. Por isso, é importante que o paciente mantenha contato com o médico para saber qual a melhor quantidade e tipo de ativo para o tratamento individualizado.

Qual a contraindicação para o uso da substância no cuidado oncológico?

Para os especialistas médicos, não existe contra indicação geral para o uso da cannabis no tratamento de pacientes com câncer. Porém, é possível ter uma contraindicação específica relacionada com o tipo de planta utilizada, visando evitar interações com outras medicações de uso do paciente. Existe também a possibilidade de contraindicação para quem fez cirurgia recente, pois a cannabis pode causar algumas interferências na questão da coagulação. Vale ressaltar que pacientes que fazem uso de medicamentos para o controle da pressão devem seguir a recomendação médica sobre o uso da cannabis.

A cannabis pode ser a cura para o câncer?

Até o momento, os estudos feitos estão focados na questão da cannabis para o alívio dos sintomas que são frutos do adoecimento pelo câncer, sem a existência de uma prova de cura que tenha relação direta com o uso da substância.

Como conseguir a cannabis medicinal?

Para o caso de auxílio no tratamento de doenças como o câncer, a principal forma de aquisição da cannabis medicinal é por meio do pedido de importação pela Anvisa. E para facilitar o caminho para aqueles que precisam, entidades como a  Associação Brasileira de Apoio a Cannabis Esperança (Abrace Esperança) podem auxiliar na questão jurídica e médica. No caso da Abrace, a associação ainda tem um laboratório próprio, dedicado para a fabricação do óleo da cannabis para os associados.

A vantagem em ter um produto produzido nacionalmente é o custo. Segundo dados da Abrace, enquanto o frasco do óleo importado pode custar entre R$1.300 e R$2.300, a produção feita pela associação faz com que o tratamento anual de pacientes fique entre R$1.070 a R$6.950.

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Quais os protocolos?

A regulamentação vigente no Brasil sobre o uso medicinal da cannabis segue protocolo de importação excepcional, com base no uso próprio do paciente e  prescrição médica.

De acordo com a Anvisa, os medicamentos à base de cannabis usados em pacientes oncológicos precisam de registro. Os produtos precisam passar por testes técnicos e científicos, sendo liberados para o uso nasal, comprimidos, líquidos e óleos.

Além dessas questões, os fabricantes dos medicamentos têm que atender às seguintes especificações:

  • Autorização especial de funcionamento;
  • Documento sobre as corretas práticas de fabricação emitido pela Anvisa;
  • Documento técnico de controle e qualidade dos produtos;
  • Estrutura operacional para a realização de análises e controle de qualidade dos produtos;
  • Banco de dados sobre a concentração dos principais canabinóides que fazem parte da fórmula do produto.

Ainda segundo a Anvisa, as farmácias que realizarem a comercialização dos produtos com base no canabidiol não podem manipular a substância no local, além de respeitar a regra da venda somente com prescrição médica.

No território brasileiro, cabe destacar que não está liberado o cultivo da cannabis para a produção de medicamentos e estudos clínicos por fabricantes. Como consequência, as empresas precisam importar o extrato da planta.

Nos casos de pacientes que não têm condições para comprar os medicamentos importados, é possível solicitar uma autorização para o autocultivo na Justiça.

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