Ta por dentro das novas informações sobre PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que busca proibir a legalização e a descriminalização de drogas ilícitas no país? No mês passado, essa história ganhou mais uma camada de complexidade à discussão já polarizada sobre a cannabis no Senado.
Se a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 34/23 for aprovada, representará um grande retrocesso na política sobre drogas no Brasil, especialmente para a comunidade que defende o uso recreativo da cannabis. A medida impõe uma proibição rigorosa à legalização e à descriminalização do uso, posse, porte e tráfico de substâncias ilícitas, incluindo aquelas que causam dependência.
Este passo para trás nega qualquer progresso rumo a uma política mais liberal e compreensiva em relação ao uso recreativo de drogas, fortalecendo uma abordagem estatal mais punitiva e menos focada na saúde pública e direitos individuais.
Divergências no governo
Em contrapartida, o STF está avaliando a possibilidade de descriminalizar o uso de cannabis para consumo pessoal. Essas duas vias representam visões opostas sobre o futuro da cannabis no Brasil e destacam a divisão entre diferentes setores da sociedade e do governo.
O Senado é uma das partes do Congresso Nacional, onde leis são criadas e discutidas. Os senadores, eleitos pelo povo, representam os estados e trabalham para formular e aprovar novas leis. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) é o tribunal mais alto do país, que não faz leis, mas verifica se as leis feitas pelo Congresso e outras ações governamentais estão de acordo com a Constituição. Basicamente, enquanto o Senado faz as regras, o STF garante que elas sejam justas e corretas segundo a Constituição.
Por aqui, o debate sobre o uso da cannabis e suas implicações legais está longe de ser simples. Mas para entender melhor esse cenário, é necessário diferenciar dois termos frequentemente confundidos: descriminalização e legalização.
Descriminalização não é Legalização
A descriminalização faz referência à remoção de sanções criminais associadas ao ato de possuir ou consumir uma substância, neste caso, a cannabis/maconha. Isso não significa que o consumo ou posse sejam legais, mas sim que não são tratados como crime.
Por exemplo: ao invés de prisão, as penalidades podem ser substituídas por multas ou medidas educativas.
Em contrapartida, a legalização envolve a criação de um quadro legal que regula a produção, venda e consumo de cannabis, similar ao tratamento dado ao álcool e ao tabaco. Legalizar a cannabis significaria estabelecer regras claras sobre como ela pode ser comercializada, quem pode vender e comprar, além de determinar as normas para o seu consumo.
A descriminalização poderia reduzir o número de prisões por posse de pequenas quantidades de cannabis, que atualmente sobrecarregam o sistema judiciário e prisional. Além disso, ao remover as sanções criminais, o Estado poderia focar mais recursos em políticas de saúde pública e prevenção ao abuso de substâncias, abordando a questão da cannabis por meio de uma perspectiva mais educativa e menos punitiva.
Liberdade com Limites
Descriminalizar drogas é tirar o caráter criminal da posse para uso pessoal, mas mantendo a substância sob um manto de ilegalidade. É como se a lei dissesse: “Não vamos te prender por isso, mas também não estamos dizendo que está tudo bem”. A produção e venda continuam no campo do ilícito, mas o usuário é encorajado a buscar ajuda em vez de enfrentar as grades.
Resumindo a diferença entre descriminalização, legalização e despenalização:
- Descriminalizar significa eliminar ações criminais, mas pode incluir multas;
- Legalizar é permitir o uso e venda sob regulamentação governamental;
- Despenalizar: reduz ou remove penalidades legais, sem tornar a substância completamente legal.
Atualmente, a cannabis permanece classificada como uma droga ilícita no Brasil, embora o uso medicinal da cannabis tenha sido legalizado sob estritas regulamentações. Uma grande contradição, não?
A proposta atual que tramita na Câmara dos Deputados poderia solidificar ainda mais a ilegalidade do uso recreativo da cannabis, limitando os debates sobre a sua potencial legalização futura.
O debate público
A discussão sobre a descriminalização e legalização da cannabis não se limita a argumentos jurídicos ou de saúde pública; ela também toca em questões sociais mais amplas como a segurança pública, economia e direitos civis. Os defensores da descriminalização argumentam que ela poderia reduzir o número de pessoas encarceradas por delitos menores relacionados à erva, aliviando o sistema prisional superlotado e reduzindo a violência associada ao tráfico de drogas.
Por outro lado, os críticos da legalização preocupam-se com as implicações de saúde pública, especialmente os efeitos do uso prolongado de cannabis e o potencial aumento no número de usuários, particularmente entre jovens. O que está acontecendo em países que legalizaram recentemente, como na Tailândia.
Mas essa não é uma realidade em todos os locais onde a legalização aconteceu. O Canadá, país onde a maconha é legalizada há 6 anos, realizou uma pesquisa nacional que monitorou o uso da substância antes e após a legalização, e indicou um aumento no consumo de cannabis, de 22% em 2017 para 27% em 2022. Como era esperado.
Porém, sua taxa de uso diário se manteve estável em cerca de 25% e o consumo de cannabis entre jovens também permaneceu estável, mantendo o observado antes da legalização.
Num mundo onde a cultura e a legislação sobre drogas estão em constantes mudanças, é crucial entender as diferenças entre esses dois termos frequentemente confundidos: descriminalização e legalização. Especialmente para a Gen-z, que vive numa era de informações rápidas e mudanças sociais, compreender essas diferenças não é apenas sobre estar por dentro do debate, mas também sobre reconhecer como essas políticas afetam a vida cotidiana e a sociedade como um todo.
Entre a liberdade e a ordem
A linha que separa a descriminalização da legalização define como o Estado se posiciona diante do uso de substâncias psicoativas. Enquanto uma busca reduzir os danos e o estigma associados ao uso, a outra cria um caminho para o consumo responsável e regulado.
A realidade brasileira, refletida no julgamento do STF, coloca em perspectiva a necessidade de repensar a abordagem criminal ao uso de drogas. A descriminalização surge como uma resposta à ineficácia das políticas repressivas, que falharam em reduzir o consumo e apenas exacerbam os problemas sociais e de saúde pública associados às drogas.
Mas qual é a origem da proibição?
A cannabis tem sido empregada por diversas culturas ao longo da história como tratamento para uma amplitude de doenças e sintomas. Desde febre e insônia até dores reumáticas e doenças como malária, a planta era reconhecida por seus benefícios médicos. Em 1850, a cannabis foi oficialmente reconhecida e incluída na Farmacopéia dos Estados Unidos como um medicamento lícito. Isso reflete uma era onde a perspectiva sobre a cannabis era predominantemente positiva, contrastando fortemente com as visões posteriores que emergiram, especialmente no século XX.
Mas essa história começa a ter caminhos tortuosos durante a Lei Seca na década de 1920, que proibiu a produção e venda de álcool e coincidiu com a popularização da maconha entre as minorias mexicanas. Com o fim da Lei Seca em 1930 e a legalização do álcool, o governo americano criou o Federal Bureau of Narcotics para combater outras drogas, como a cocaína e o ópio. Henry Anslinger, chefe dessa nova agência, incluiu a maconha na lista de substâncias proibidas, com argumentações baseadas em boatos que associavam a criminalidade para justificar a perseguição à planta.
Existem suspeitas de que Aslinger também foi motivado por interesses econômicos, beneficiando indústrias que competiriam com o cânhamo, fibra derivada da Cannabis usada na fabricação de tecidos, papel, cordas, resinas e combustíveis. Companhias petrolíferas e fabricantes de fibras sintéticas viam com maus olhos a competição com o cânhamo.
Era da Proibição nos anos 1930
Durante a era da Proibição nos anos 1930, o uso recreativo da cannabis aumentou significativamente. No entanto, em 1937, o Ato de Imposto sobre a Maconha acabou praticamente com todos os usos da cannabis, sem criminalizar diretamente sua posse ou uso.
No Brasil, a importância do cânhamo remonta às caravelas portuguesas de 1500, feitas dessa fibra. Durante os primeiros anos de colonização, o cultivo de cânhamo era até incentivado pela Coroa Portuguesa. O uso da maconha como substância psicoativa se espalhou entre escravos e indígenas, mas sem grandes preocupações iniciais. No final do século 19, era até recomendada por médicos para tratar bronquite, asma e insônia. Porém, a partir de 1930, influenciado pelos EUA, o Brasil intensificou a repressão ao uso da maconha, frequentemente associando-a a preconceitos raciais — a criminalização da Cannabis serviu para marginalizar ainda mais a população negra.
Classificação e Controvérsias
Em 1970, o Ato de Substâncias Controladas classificou a cannabis como uma droga ilícita de categoria I, a mais restritiva, citando alto potencial de abuso, falta de uso médico aceito nos EUA e falta de segurança aceita para uso sob supervisão médica. Essa classificação ainda é apoiada pela DEA, apesar das conclusões de várias agências, como FDA e NIDA, que questionam os estudos científicos sobre o uso médico da cannabis. Esse panorama jurídico cria um campo minado para pesquisadores e afeta diretamente as políticas sobre drogas.
Nos Estados Unidos, a cannabis é a droga ilícita mais usada. Dados recentes indicam que o uso regular de cannabis está em ascensão, com estatísticas mostrando um aumento no número de usuários, especialmente entre jovens acima dos 12 anos. Esse aumento destaca a importância de políticas informadas por dados e estratégias de prevenção eficazes para lidar com o crescente uso de cannabis entre as populações mais jovens.
Diferentes tipos de legalização da cannabis por estado nos Estados Unidos. Fonte: Rolling Stone
A abordagem à cannabis varia significativamente de país para país, refletindo uma variedade de políticas legais e culturais. Nos Estados Unidos, a legalização da cannabis tem se expandido rapidamente nos últimos anos, com até o momento, 19 estados permitindo seu uso tanto recreativo quanto medicinal.
Por lá, a legalização da cannabis permite o consumo de maconha, e o uso da cannabis não é considerado nem um crime, nem uma contravenção.
Existem dois níveis de legalização da cannabis
- Legalização de toda a maconha, tanto para uso médico quanto recreativo;
- Legalização apenas da maconha medicinal (para portadores de cartões certificados).
O primeiro nível, a legalização de toda a maconha, é menos comum nos EUA do que a legalização da maconha medicinal. O acesso legal à maconha, seja para fins médicos, recreativos ou ambos, torna permitido o uso pessoal e a posse da planta.
Existe um grande mercado ilegal para a cannabis nos Estados Unidos e globalmente. Comprar cannabis no mercado clandestino traz riscos de qualidade inferior do produto e consequências criminais. A legalização da cannabis remove essas barreiras e permite que as pessoas comprem cannabis de lojas e vendedores legalmente licenciados.
Já no Brasil, a legislação atual restringe o uso da cannabis exclusivamente para fins medicinais e sob rigorosa prescrição médica.
A complexidade da situação exige um diálogo informado e abrangente, considerando todas as nuances da descriminalização e da legalização. Mas uma coisa é certa, a diferenciação do que é cannabis medicinal e cannabis recreativa só constrói pontes entre o caminho para o acesso à planta com qualidade e de forma legal.
Fontes:
Mestranda em Biodiversidade, louca por plantas e toda flora brasileira. Encontro na escrita sobre a Cannabis um caminho de cura para o (re)conhecimento com as potencialidades da terra.